Um dos assuntos recorrentes nas habituais crises existenciais portuguesas, é o tema da União Ibérica. Sem que na realidade se leve muito a sério esta falsa questão, surge sempre em momentos de grave crise económica e social. Os portugueses desde há muito interiorizaram uma franca e por vezes intempestiva repulsa perante tal cenário, mas há que afirmar que desde sempre existiu um muito minoritário, quiçá envergonhado sector, que aproveitou as ocasiões para fazer valer as suas alegadas razões. Quem tenha lido a Aliança Peninsular de Sardinha, poderá chegar ao fim desta obra plena de contradições, com um acentuado sentimento de perplexidade e de simultâneo conforto. Após inventariar exaustivamente as mútuas e bem conhecidas tentativas de unificação desde o alvorecer da nossa identidade nacional-soberana, Sardinha conclui pela inevitabilidade de uma estreita aliança peninsular, porque julga que os interesses de ambos os Estados, se nem sempre são os mesmos, podem complementar-se com o pleno contentamento de Madrid e de Lisboa. Horizonte idílico, mitómano e totalmente desajustado da própria realidade. Realidade essa que foi vivida nas décadas que medeiam o ocaso de oitocentos e o advento do século XX e que o autor integralista não quis compreender, na época da moda dos "ódios" ao John Bull. Sardinha chega atrasado a uma já passada época que vira a unificação da Alemanha e da Itália, nomes que tendo desde há séculos representado simples expressões geográficas, passaram a consubstanciar novas realidades sob a forma de dois novos e importantes Estados.
A construção do chamado Estado Espanhol é fruto de condicionalismos histórico-políticos e geográficos. De facto, a Espanha dos Reis Católicos possui à época, um maior peso territorial noutros pontos da Europa, que aquele a que nos habituámos a vislumbrar em qualquer mapa mais recente. A união com Aragão, pressupôs a administração dos territórios da Itália do sul que daquela coroa dependiam, facto que se tornou ainda mais complexo com a herança austríaca dos Habsburgos que com Carlos V (I), transformam a Espanha numa grande potência territorial europeia, no preciso momento em que inicia a conquista imperial nas Américas. Os seus interesses são múltiplos e abrangem o Mediterrâneo, os Países Baixos e o Mar do Norte, assim como as novas conquistas além-mar.
A União de 1580-1640 consistiu num evidente fracasso que já se tornava claramente previsível poucos anos decorridos após as Cortes de Tomar. O país foi desarmado, a ausência da corte fez estiolar o mecenato cultural - por exemplo, a pintura portuguesa ressentiu-se de forma irreparável - e a submissão dos interesses das oligarquias portuguesas dependentes do comércio ultramarino, aos desígnios imperialistas espanhóis na Europa, foram o cadinho e a bigorna onde se forjaram as armas que conduziram ao levantamento do 1º de Dezembro.
Após a sua unificação de 1492, a Espanha jamais conseguiu implementar como código de conduta, uma linha coerente, logo persistente, de uma política externa que fixasse os objectivos essenciais à prossecução daquilo a que normalmente se chama de interesse vital. Desde sempre oscilou entre uma decidida intervenção nos assuntos europeus e a necessidade em acorrer em defesa da fonte do seu sustento, ou seja, o império colonial americano. Adivinhava-se-lhe o primordial papel de grande potência marítima que afinal não conseguiu ser, por manifesta impossibilidade de conciliar interesses tão divergentes e de obter os recursos necessários para um imperialismo planetário. A estrutura social do país não permitiu um rápido arranque manufactureiro que aliás se via mitigado pelas ingentes remessas de metais preciosos e de outros bens provenientes do Novo Mundo. O desbaratar de recursos na manutenção de múltiplas frentes de combate na Europa, frentes estas que se estendiam das margens do Canal da Mancha (Flandres espanhola), à Alemanha, ao norte da Itália e às suas possessões napolitanas, impossibilitaram a consolidação de um efectivo poder militar naval que pudesse obstar à insuperável ascensão das suas rivais setentrionais, a Holanda e a Inglaterra. Em 1640, talvez a data que marca o fim da condição de potência hegemónica até aí pertencente ao reino vizinho, Madrid vê fugir ao seu controle, não só uma das dependências que desde sempre considerara como parte intrínseca do seu corpo "nacional", como uma parte muito substancial do seu império colonial que volta a resumir-se às possessões americanas e às longínquas e secundárias Filipinas. Seis décadas mais tarde e já consagrada e reconhecida a perda do reino português em 1668, é a própria Espanha que se transforma em campo de batalha das novas forças em luta pela hegemonia, situação que a conduziu irremediavelmente para a órbita francesa para o resto do século XVIII, confirmada também pela forçada e desastrosa aliança com Bonaparte.
O verdadeiro problema português, consistiu, consiste e consistirá, em pesar o real valor da vontade de independência e exercício da soberania nacional. É incontestável esse querer, pese as aparências que parecem avolumar-se subitamente em dados períodos difíceis, para logo se volatilizarem no éter das insignificâncias da História. Esta é a realidade, crua e dura, cimentada pela expansão ultramarina que deu uma contribuição decisiva para a formação daquilo a que poderemos chamar consciência nacional e onde os membros da CPLP têm uma palavra a dizer. Um cenário de puro desaparecimento de Portugal como entidade autónoma seria impensável e nem sequer dentro da União Europreia encontraria países que contemporizariam com a situação, porque desequilibraria a relação de forças existente e abriria um precedente com consequências gravosas para a própria existência da União. A constante de um desígnio histórico, demonstra que Portugal é o único país europeu, cujo território sempre foi reivindicado na totalidade pelo seu poderoso vizinho. No nosso tempo, tal bizarria política apenas encontra paralelo no caso israelita. Imaginemos o que aconteceria se a Alemanha promovesse campanhas mediáticas - à semelhança daquela que recentemente ocorreu na imprensa espanhola - questionando a sua população sobre a hipótese de um segundo Anschluss com a Áustria? Este país independente do sul da outrora expressão geográfica Alemanha, partilha a mesma língua e durante séculos, foi teóricamente o Estado cimeiro no conjunto imperial romano-germânico, deixando vivas reminiscências na população. O caso ibérico é muito diferente e não passa de uma nota de rodapé da História.
Não merecendo qualquer reflexão adjacente acerca de um inexistente debate interno acerca deste falso tema, podemos contudo imaginar um cenário, em que mercê de um absurdo imponderável, tal calamidade se pudesse voltar a colocar como opção aos portugueses. Assim, seria curioso estudar esta possibilidade no âmbito dos jogos de forças e de poderes na Europa e no espaço do Atlântico norte. Não querendo uma vez mais usar a frase do primeiro-ministro britânico que há 120 anos declarava que "Lisboa terá sempre que ser um porto amigo da Grã-Bretanha", princípio este sempre seguido rigorosamente por Whitewall, mesmo durante as horas difíceis do Ultimatum, da I e da II Guerras Mundiais, resta-nos tentar adivinhar qual seria a reacção da principal potência marítima dos nossos tempos, os Estados Unidos da América.
Olhando para o mapa deste âmbito geográfico, deparamos com uma massa territorial de certa importância na Europa que possui uma excrescência insular nas Canárias, numa zona do atlântico que confina com um Marrocos de imprevisível evolução política. Por sua vez, Portugal ocupa a principal fachada atlântica da Ibéria e conserva o tradicional património histórico insular adquirido na fase de arranque da epopeia dos Descobrimentos, ou seja, os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Desfeita a ilusão da perda de importância estratégica devido aos avanços tecnológicos, vivemos tempos difíceis e conturbados, onde a base das Lajes mantem intacta a sua categoria de posição privilegiada de sentinela neste segundo "Midway", neste caso, o caminho que conduz à América ou em sentido contrário, à Europa. Lisboa continua também a ser um potêncial porto de grande relevo nesta zona do mundo e em conjunto com os Açores, é Portugal uma vez mais, um peão de certa importância para os interesses da talassocracia norte-americana. Desde a fundação da NATO, os EUA têm sempre contado com a pronta colaboração e disponibilidade portuguesa na aliança ocidental e o nosso país jamais deixou de pertencer à estrutura militar concertada entre os europeus e os americanos. Durante a Guerra Fria, pese a clara ingerência americana em prejuízo dos nossos interesses em África, Portugal manteve-se firme durante todos os momentos de crise, desde a Guerra dos Seis Dias, à do Yom Kippur (1973), quando uma vez mais, as facilidades concedidas nos Açores, ditaram a vitória dos israelitas, que superaram a avalanche numérica e técnica apresentada pelos egípcios, sírios e seus satélites. Portugal tem sido um bom e fiel aliado e nem mesmo o breve PREC de 1974-75, causou qualquer dano irreversível a esta situação decorrente do final da II Guerra Mundial.
Aliado tradicional do Reino Unido, o nosso país sempre se mostrou disponível para colaborar - outorgando facilidades logísticas proporcionadas pela base das Lajes - com Londres e a própria Guerra das Falkland (1982) demonstrou a solidez dessa aliança. A estreita relação entre os EUA e o R.U., encontra em Portugal um ponto de apoio vital e de confiança, sabendo-se que a própria independência - e vontade para tal - do Estado português, depende da continuação de uma política distante das perigosas zonas de conflito geralmente ditas "continentais". A política da Grã-Bretanha é a nossa política e em consequência lógica, a política dos EUA, é também o principal fio condutor dos nossos governantes, não importando o partido, facção ou regime no poder em Lisboa. Para a esmagadora maioria dos portugueses, sempre assim foi, é e será. É um sentimento ou percepção instintiva ditada pela necessidade e vontade de sobrevivência e pelo indisfarçado orgulho - sempre demonstrado em momentos cruciais - de um papel fundamental que desempenhou na história mundial.
Na óptica dos americanos, a Espanha, país de crescente relevância no concerto das nações, será talvez a permanente incógnita. Tendo-se modernizado rapidamente nas últimas cinco décadas, adquiriu um estatuto que não se lhe concedia há séculos e com uma economia pujante, construiu uma marinha moderna e eficiente e um temível e bem equipado exército. O grande problema consiste no eterno retorno dos seus governantes aos quid pro quo da política quotidiana que satisfaça as várias opiniões públicas existentes dentro deste Estado plurinacional e simultaneamente, a pétrea indecisão quanto ao almejado papel a desempenhar pelo reino. A própria ameaça sempre latente, de fragmentação que conduziria à instabilidade nesta vital região do Atlântico norte, aconselha à manutenção do status quo. Muito sucintamente, colocar-se -á sempre a questão da confiança e fiabilidade de uma aliança espanhola que jamais deixou de sofrer oscilações. A retirada apressada, de contornos pouco marciais e até extemporânea do contingente espanhol no Iraque, indicou a Washington que ao contrário do seu aliado português, Madrid voga ao sabor dos interesses e pressupostos partidários de momento. Uma vez mais, confirma-se a velha história que para nossa segurança, é incontornável.
Tal como o primeiro-ministro da rainha Vitória, os presidentes norte-americanos quererão sempre ter em Lisboa e nos Açores, uma presença amiga e de inabalável lealdade. É o preço a pagar pela perenidade da obra de Afonso Henriques.
2 comentários:
Notável análise. Senti o gosto do realismo político, tantas vezes abafado pelo politicamente correcto da classe política e de alguns académicos.
Mais uma vez se constata que o realismo confere uma análise imparcial e desprovida de idealismos impregnados de ideologias ou do politicamente correcto, infelizmente também adoptado por muitos académicos.
É o nosso fado Nuno, sem dúvida, concordo plenamente, sempre foi, é e sempre será. Quanto à Espanha, parece-me que uma união Ibérica, neste momento, seria o que os governantes espanhóis menos desejariam. É que ter que enfrentar novamente aquele povo dos lados da Lusitânia que "não se governa nem se deixa governar", só traria ainda mais prejuízos a nível de eventuais separatismos e secessões das várias províncias espanholas.
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