sexta-feira, 30 de maio de 2008

Croniquetas Republicanas (7): Relvas estrumadas


Da leitura em diagonal das Memórias Políticas de José Relvas, decidimos retirar mais alguns valiosos contributos para o melhor conhecimento daquilo que foi o regime saído do golpe de 1910, assim como das questíunculas, ódios e irresponsabilidade política e moral dos seus principais dirigentes.

Sendo Relvas geralmente apontado pelos panegiristas do regime da Demagogia, como uma inatacável personalidade eivada de todo o tipo de qualidades políticas, morais e intelectuais, os seus escritos deverão ser encarados como honestos testemunhos da situação imposta pela violência a um país coagido pela coacção física e propagandista.

Já na fase pós-sidonista, Relvas parece esquecer-se da feroz luta contra a "ditadura" administrativa de Franco (1906-08) e assim, declara em 1919 ..."como pode o Governo com o actual Parlamento que já não representa a vontade nacional, visto que o País aceitou o meu Ministério, não só sem resistências, mas até com aplauso? Foi por isso que eu fiz na entrevista um apelo ao Parlamento para nobremente votar o princípio da dissolução e uma nova lei eleitoral, elaborada com o consenso dos partidos, deixando entrever que se a vida do executivo ainda fosse possível com as actuais Cortes iríamos até ao momento em que novas eleições constituíssem uma necessidade inevitável para a formação dos dois novos e grandes partidos, base duma tranquilidade, que não conhecemos há muito tempo".

Este parágrafo remete-nos de imediato à famosa entrevista dada pelo rei D. Carlos ao Temps, em que os pressupostos para a normalização da vida pública, tinham como ponto central a formação de dois partidos constitucionais verdadeiramente alternativos - o governo "à inglesa" - e à elaboração de um novo sistema eleitoral mais equilibrado. Mais de uma década decorrida e num cenário de indescritível desordem pública, miséria económica e clara, embora camuflada derrota militar na I Guerra Mundial, Relvas parece pretender ressuscitar o plano de João Franco, num momento em que a dissolução do regime já se tornara inevitável.

Continuando, o autor escreve que ..."acentua-se a campanha da dissolução em termos da maior violência. Hoje, na Câmara, quando se começava a discutir o projecto a que me referi na carta de ontem, o Francisco Fernandes afirmou que tal projecto, recordando o decreto de 31 de Janeiro, de João Franco, o excedia todavia nas autorizações arbitrárias que concedia ao poder executivo. Devo dizer-lhe que não é muito grande a correcção do dr. Fernandes e o seu espírito de transigência, não hesitando em aprovar o projecto desde que ele contivesse a restrição das autorizações concedidas apenas ao actual Governo". Por outras palavras, é a "ditadura!

A guerrilha entre os caciques republicanos, vai enrubescendo de fulgor e assim, ..."o Cunha Leal - comediante-tragediante sabendo que o Parlamento já não existia, resignou o seu mandato de deputado perante o comício. E acrescentou que, se o Governo não decretasse a dissolução, convocava desde já o povo para dissolver o Governo!" Foi esta a gente de alegados elevados princípios de rectidão moral que quis governar o país. Continuando, vai escrevendo que ..."esse farsante subiu as escadas do Ministério do Interior, acompanhado de populares, que a breve trecho entravam violentamente no meu gabinete, armados com pistolas e espingardas, invectivando-me e não me tendo morto, graças à oportuna e enérgica intervenção de Tito de Morais (...) entretanto, nas Ruas do Ouro e dos Capelistas continuava o tiroteio com a polícia, obrigada a defender-se dentro já da esquadra do banco de Portugal. Havia mortos e feridos. O primeiro polícia foi morto à porta do Ministério (...) durante a noite a Polícia, que se manifestara hostil ao Governo, teve de render-se, não sem ter manifestado num pátio da Parreirinha os seus afectos em vivas entusiásticos à Monarquia"...

De Machado Santos, a grande figura do 5 de Outubro da Rotunda, , dizia que ..."é um sincero em tudo o que faz. Há porém entre estes dois homens diferenças fundamentais. É honestíssimo. Mas é de uma mediocridade intelectual assustadora, o que o conduz, fora da Rotunda, a todos os desaires e a todos os desastres. Está sendo cúmplice inconsciente do Cunha Leal, que não tem escrúpulos de nenhuma espécie, que é superiormente inteligente, e ilimitadamente ambicioso".

Na sua 24ª carta, desabafa que ..."quando mataram o Sidónio - vilíssimo assassinato -, e quando o Teófilo Duarte passeava por Lisboa as suas loucas tropelias, dizia-lhe eu que tinha a impressão de presidir a um manicómio. Hoje tenho a impressão de habitar um covil de feras!" Estas palavras são absolutamente idênticas às de D. Manuel II logo após os acontecimentos de 1908-10, mas Relvas parece esquecer-se do constante recurso à violência física promovida pelos chefes do p.r.p. nos derradeiros anos da Monarquia Constitucional.

De Guerra Junqueiro, fazendo juz ao preconceito da época e aludindo ao desvario pela acumulação de riqueza que parecia obcecar o vate da república, dizia que ..."o fundo irresistível da sua origem semita procura conciliar, com a mais alta e nobre visão da Pátria, os interesses da sua ambição. O que o conduz por vezes a situações lamentáveis".

Voltando à dissolução do parlamento, Relvas escreve: "Outro acto de firmeza do governo que parece estar esquecido, e que todavia não podia ser de maior transcendência, foi a dissolução do parlamento. Por não estar incluída na Constituição a faculdade de dissolver o Parlamento, atravessámos épocas políticas agitadíssimas, e viemos a dar a uma revolução." Curiosa auto-condescendência do escriba-primeiro ministro, parecendo oportunamente esquecer-se da tremenda campanha de imprensa levantada pelos republicanos durante o governo de João Franco. Assim, para Relvas a ilegalidade justifica-se desde que seja a "sua ilegalidade".

Não nos alongando mais no demolidor contributo do antigo primeiro ministro da 1ª república, finalizamos, como epitáfio de uma situação insolúvel, com um pequeno parágrafo:
"Entretanto, todas as pessoas que passam pelo meu gabinete estão assombradas com o espectáculo duma política tão mesquinha. Realmente, este gabinete é agora um posto de observação, e até de estudo, para psicólogos. Nesta luta de pigmeus, a fingirem de grandes homens, é fácil distinguir os motivos que os fazem agir (...) é a indicação que leva ao Terreiro do Paço outro Governo, que não pode ser, senão em outros moldes e com outras pessoas, uma reprodução do que vai desaparecer sumido nessa terrível voragem de desorientação e desprestígio em que se somem, nos últimos anos, em Portugal, umas atrás das outras, todas as situações ministeriais?"

* Na imagem, manifestação popular de apoio a D. Manuel II, diante do Paço das Necessidades (1910).

2 comentários:

Pedro Fontela disse...

Nuno,

Acho estes textos extremamente interessantes em termos históricos mas tenho uma coisa a apontar. Tenho que discordar que os problemas da Republica derivem exclusivamente de problemas de falta de caracter por parte dos altos escalões do PRP. Há nele nomes asquerosos tal como pessoas integras e fora de série, tal como havia na monarquia - e depois há os que transitaram entre regimes conforme a conviniência...

Os grandes entraves às reformas da Republica (que em teoria trariam realmente mudanças positivas) foram:
- Monárquicos na sua fase de resistência violenta e revolta constante.
- A Igreja em termos de reforma social até 1918 altura em que se apercebeu que a monarquia não iria voltar.
- E acima de todos: a alta burguesia, com interesses importantes na agricultura (e controlando os caciques herdados da monarquia), negócios coloniais e banca. Estes senhores em tudo minaram as reformas do regime e destruiram por completo o projecto republicano - aliás a 1ª Republica ainda estava na sua fase final já estes interesses se aliavam em sectores conservadores políticos e económicos que abriram caminho ao Estado Novo.

Por muito que se desgoste da Republica há que reconhecer que os Republicanos de alma e coração deram tudo pelos seus ideais e que ao fazerem uma escolha errada de aliados encontraram-se numa posição que só podia acabar por destruir com tudo o que haviam sonhado.

Nuno Castelo-Branco disse...

Pedro, estou de acordo com quase tudo aquilo que escreveste, mas:
1. Há que compreender que a dita república não foi tema pacífico nem antes, nem após a instauração. Isso mesmo, instauração. Não houve qualquer referendo, nem existe qualquer dado imperativo quanto à inevitabilidade da mudança do regime. factores houve que se cruzaram e num dado momento propiciaram essa mudança, tal como podia ter acontecido em 1919. Não se podia esperar )vejam-se as imensas fotos existentes da época) que os monárquicos fossem apenas uma meia dúzia de abastados sem qualquer apoio fora das classes abastadas. Pelo contrário.
2-A demagogia criou mitos e cenários apocalípticos quanto à "questão religiosa", afinal uma mera emulação daquilo que Paris produzia como propaganda de contornos programáticos ideais e meramente apelativos ao sentimento. O resultado estavaà vista e o Estado deixou de controlar efectivamente as nomeações para os postos mais importantes da hierarquia.
3-Jamais cometeria a torpeza de considerar a totalidade dos "republlicanos" como homens negregados e desonestos. seria uma tremenda injustiça, porque existiam homens que lutavam por um Ideal - fosse ele qual fosse -, mesmo que sem grandes fundamentos e baseando-se apenas em meras paixões ou teimosias. falta-nos aquele sentido prático das gentes do norte da Europa. Aliança política e militar com a Inglaterra (sentido prático) e cultural/emocional com a França (inutilidade).
4- Grandelas, grandes negócios, Relvas e outros terratenentes, comerciantes com grandes interesses nas colónias, eis o pleno da gente do Ditectório do PRP. Primeira vítima? O Partido Socialista, agremiação em tudo muito superior - até moralmente - ao PRP, com um claro programa de protecção ao pequeno operariado - activo ou ocioso - que vivia recentemente nas duas grandes cidades. O PS (que nada ou pouco tem em comum com o actual), pretendia modificações reais na relação de forças patronato-operariado e reorganização do sistema político. Estava no caminho trilhado pelos seus congéneres da Europa do norte e central, deixando a questão do regime de lado, tal como aliás aconteceu na Noruega (1905), onde se decidiu pela não estabelecimento da forma de representação do Estado que foi aqui instaurada a tiro em 1910. Os republicanos do Costa e do Bernardino, com a clara conivência da sua direita do Almeida e do Camacho, arrasaram o nascente movimento sindical, reduziram o corpo de eleitores (os cadernos eleitorais) e mantiveram férreo controle sobre as greves e quaisquer veleidades de organização de um verdadeiro sector que representasse aquilo a que chamamos de "esquerda". Enfim, é a nossa doença endémica da perda de tempo com quimeras.

Como nota, deixo apenas a minha oposição a situações de força que prejudicam o verdadeiro progresso e normal evolução da sociedade. Embora a sua opinião seja suspeita, é curioso ler o que Lenine escreveu acerca dos republicanos portugueses. Não tinha qualquer tipo de ilusão acerca dos senhores do regime. Pagámos caro e o que mais me custa foi o colossal desperdício de uma experiência - mesmo que conturbada - de um sistema constitucional representativo que hoje teria, grosso modo, uma tradição de 180 anos.
A república falhou, porque os seus instauradores não tinham na verdade, um verdadeiro plano alternativo à situação anterior a 1908. Se a isto juntarmos a perturbação da ordem pública com uma inaudita e generalizada violência, temos o quadro ideal para uma solução de grande força autoritária. Foi o que se viu. Infelizmente. E pelo que parece, estamos alegremente a embarcar no mesmo trem que tem como destino final, a mesmíssima estação!