quarta-feira, 28 de maio de 2008

Uma outra visão de Camilo

É de todos conhecido o mau feitio de Camilo, mas por muitos ignorada uma outra faceta do seu carácter, trazida até nós pelo camilianista, seu contemporâneo, António Cabral.
Tinha este acto abonatório de uma índole generosa vindo a público nas páginas d'«O Primeiro de Janeiro» de 3 de Junho de 1890, pouco tempo, portanto, após a morte do escritor.
"Foi há muitos anos, na Póvoa de Varzim.
Camilo achava-se naquela praia, para onde fora com os filhos, que iam fazer uso dos banhos do mar.
No mesmo hotel em que estava Camilo, achava-se um medíocre pintor espanhol, que perdera no jogo da roleta o dinheiro que levava.
Havia três semanas que o pintor não pagava a conta do hotel, e a dona, uma talo Ernestina, ex-actriz, pouco satisfeita com o procedimento do hóspede, escolheu um dia a hora do jantar para o despedir, explicando ali, sem nenhum género de reservas, o motivo que a obrigava a proceder assim.
Camilo ouviu o mandado de despejo, brutalmente dirigido ao pintor. Quando a inflexível hospedeira acabou de falar, levantou-se, no meio dos outros hóspedes, e disse: - a D. Ernestina é injusta. Eu trouxe do Porto cem mil réis que me mandaram entregar a esse senhor e ainda não o tinha feito por esquecimento. Desempenho-me agora da minha missão. E puxando por cem mil réis em notas entregou-as ao pintor. O Espanhol, surpreendido com aquela intervenção que estava longe de esperar, não achou uma palavra para responder. Duas lágrimas, porém, lhe deslizaram silenciosas pela faces, como única demonstração de reconhecimento".

9 comentários:

José M. Barbosa disse...

Bonito. Não conhecia (por isso venho aqui amíude, para conhecer coisas que desconhecia).
Estilo que contrasta com aquela estória que suponho das memórias de Raul Brandão sobre o Fialho de Almeida e Cesário Verde (não sei porque me lembrei desta).
No dia do casamento do Fialho de Almeida com uma burguesa (família alentejana abastada), Cesário (que não era convidado) quando o casal saía da igreja rodeado pelos convidados, gritou alto e bom som :
- Ó Fialho, que horas é que são no relógio do teu sogro ?
Verdade ou não, engraçadíssimo!

José M. Barbosa disse...

Já agora, suponho ainda que da mesma fonte, estando o Fialho de Almeida com amigos no Chiado, subia no passeio oposto o Cesário Verde.
Diz o Fialho :
- Olhem, ali vai o Cesário azul.
Responde o Cesário:
- Olha olha, lá está o troca-tintas!

(não garanto as fontes, estou a ficar senil)

Cristina Ribeiro disse...

José, sejam ou não verdadeiros esses dois episódios, são bem apanhados :)

osátiro disse...

Sem dúvida, uma faceta pouco camiliana; ou melhor, menos ligada ao mito camiliano.

Cristina Ribeiro disse...

Acho, mesmo, que era um mito; não obstante um mau feitiozinho- quem não o tem que atire a primeira pedra, embora haja uns "mais maus do que outros"-: li há pouco tempo uma carta de Ana Plácido em que ela jura a pés juntos a generosidade do coração de Camilo, e ninguém melhor do que ela para o dizer...

Nuno Castelo-Branco disse...

Pois Cristina, mas isso não o impediu de usar e abusar da paciência dela.

cristina ribeiro disse...

Tem de ler essa carta, Nuno. Mostra que nele viu qualidades que superavam esse propagado mau feitio.

Nuno Castelo-Branco disse...

Decerto... porque ficaria com ele o resto da vida?

Cristina Ribeiro disse...

Pois...