quinta-feira, 3 de abril de 2008

Portugal e o Mundo de hoje. Parte I: a Ásia



Uma das razões da perenidade de Portugal como entidade nacional erigida em Estado independente será a sua própria história. Poder-se-á dizer sem exagero que é talvez um caso único na Europa, verificada a exiguidade do território, a inexistência de uma população numerosa e a escassez de riquezas naturais propiciadoras de constituírem per se, uma atracção para aventureiros comerciantes, artistas ou homens do saber à procura da abastança que susceptibiliza a criação. Tal como os antigos gregos, os portugueses tiveram que procurar além-mar, novas terras e outras gentes que propiciando novos produtos e oportunidades, garantissem a sua vida autónoma num ambiente geográfico de isolamento e constante pressão por parte do único e poderoso vizinho europeu.

Se a primeira fase da expansão ultramarina teve África como primeira fonte de exploração de possibilidades, as promessas oferecidas pela miragem indiana, catalisaram os esforços no sentido do Oriente. O espaço geográfico, político e cultural com que os homens de quinhentos  tiveram que se conformar era o de sociedades complexas e perfeitamente organizadas e na maioria dos casos, muitíssimo avançadas em relação a uma Europa que no alvorecer do Renascimento, começava a gozar os esquecidos luxos do seu passado antigo e redescobria um imenso e até então ostracizado legado cultural devastado pela queda de Roma e a ascensão de uma nova religião que se substituía ao poder imperial e ao saber dos clássicos.

O desembarque português na Índia não estabeleceu qualquer tipo de relacionamento padrão com os potentados, porque a "Índia" significava apenas uma área geográfica, onde coexistiam diferentes tipos  de  organizações estatais, sociais e religiosas. Se o subcontinente era então uma superpotência económica capaz de fornecer todos os apetecidos bens a uma Europa  onde a frugalidade era obrigatória devido ao  inacessível preço dos luxos asiáticos, a divisão das Índias em múltiplas realidades políticas, dificultava a acção dos adventícios mercadores-navegantes. Portugal aprendeu a arte da diplomacia e comprovou a fragilidade ou a solidez das alianças. Participou na ascensão e calculou a queda deste ou daquele reino. Favorecendo os seus amigos de oportunidade, indirectamente gizou fronteiras e naquelas paragens marcou de forma indelével, o conceito daquilo que durante séculos foi para a generalidade dos asiáticos, o "homem branco". Para o bem e para o mal. Se o conhecimento de novos mares e novas estrelas garantiram a talassocracia de um século, atraiu também e de forma inevitável, a atenção daqueles que vindo a Lisboa para obter o seu quinhão de perfumes, sedas, porcelanas e especiarias, aqui iniciaram a aprendizagem  daquilo que foi a primeira globalização. Na verdade, quando Toynbee divide a história entre a Era Pré-Gâmica e Gâmica, estabelece o marco que definiria o relacionamento entre continentes e as suas gentes.

Portugal criou empórios, viabilizou indústrias e inventou novas dependências. Articulando em favor das suas feitorias e clientes todo o comércio asiático com a longínqua Europa, consolidou dentro das suas frágeis fronteiras, o entendimento que os seus povos até então unidos pela religião e pelo sentido de comunhão de interesse com o monarca, passaram a ter de si próprios. Na consciência do seu papel na respublica christiana reconheceram a sua unidade e sem ainda o saber, tornaram-se na nação que hoje somos. Ironicamente terão sido as Índias o catalisador da verdadeira nacionalidade, ciosa da sua independência e lugar no mundo.

Decorreram séculos e os nossos adversários tomaram momentaneamente o lugar que conquistáramos. Vitória efémera e condenada a tornar-se em simples eflúvio pelo despertar dos povos que tal como fizéramos em 1179, obtiveram a sua própria independência.

As últimas décadas do século XX, conformaram as fronteiras políticas e desvanecendo-se as barreiras ideológicas da Guerra Fria, a Ásia assistiu a um impressionante período de desenvolvimento material, sofrendo simultaneamente uma influência cultural que provindo do aparentemente adversário Ocidente, moldou a realidade que hoje vivemos de forma global.

Conseguindo em 1947 a unidade política pela primeira vez na sua história milenar, a  Índia dos nossos dias parece regressar ao primeiro plano no concerto internacional, formando técnicos de renome, fervilhando de actividade nas suas academias, manufacturando produtos de acordo com o mais refinado gosto europeu, ao mesmo tempo que ressurge como destino de sonhos de riqueza ou do simples e necessário lazer. A Índia oferece e vende a sua imagem de "maior democracia do planeta", apesar das gigantescas e aparentemente inultrapassáveis contradições económico-sociais que conformam a estrutura de uma "nação" que ainda está em gestação. Tal como a sua vizinha China, foi durante séculos uma simples expressão geográfica e a separação de parte do território pertencente ao antigo império britânico ajudou a moldar um Estado mais homogéneo, apesar das reconhecidas diferenças étnicas ou religiosas.

 Os indianos interessam-se desde há muito pela África oriental e são os lógicos competidores dos chineses em muitas áreas, desde o mercado das matérias primas, aos clientes de produtos de exportação. Lutam pela criação de um espaço vital de interesse - os Himalaias, a Indochina, o Índico ocidental e oriental e possuindo uma respeitável marinha, servem de peão essencial no equilíbrio de forças naquela vasta área, facto que é conhecido por americanos e europeus. No entanto e sendo os interesses portugueses hoje meramente simbólicos e baseados no saudosismo de uma história passada, a relação parece dificultada pelo próprio complexo indiano relativamente à época colonial. Não tendo sido a presença imperial estrangeira mais importante, a portuguesa foi a primeira a fazer sentir a mudança na relação de forças, abrindo o caminho ao futuro domínio inglês. Aliás, o chamado "estilo colonial", é uma clara evidência da profunda influência que Portugal exerceu em muitas áreas, onde a arquitectura não será talvez a jóia menos preciosa. Os acontecimentos de 1961 são também pretexto para uma inextinguível desconfiança indiana que acaba por reconhecer sem o exprimir abertamente, o relevante legado luso naquelas paragens, desde a língua à gastronomia e mais importante que tudo, à religião que marcou extensas camadas da sua população que adoptou crenças, usos e costumes trazidos há séculos e adaptados a uma nova realidade. Não será arriscado prever neste país, mais dificuldades que aquelas a encontrar no seu vizinho do norte, mas apesar disso a Índia oferece oportunidades irrecusáveis, permitindo - paradoxalmente? - a própria modernização de importantes sectores de actividade nacional, desde a informática à medicina. A Ásia parece ser uma vez mais, a terra prometida.

 Neste âmbito geográfico e após a II Guerra Mundial, a China despontava como a grande e futura superpotência regional que pela sua dimensão, situação e peso da demografia, prometia a hegemonia face a um Japão muito diminuído após 1945. O período maoísta foi ultrapassado pela praxis e realidade dos números ditados pela oportunidade económica e os chineses assistiram a um desenvolvimento industrial e urbano comparável no espaço asiático, ao experimentado pelos japoneses da era Meiji.   O regime parece manter intactos os seus postulados político-ideológicos de controle totalitário da sociedade, mas é visível a radical modificação imposta pelos novos agentes económicos que inevitavelmente esbaterão aquela matriz. A China cresce e impõe-se porque é figura cimeira do nosso desejo de consumo, criando interdependências aparentemente inultrapassáveis. Vive a euforia da promessa da ascensão ao lugar cimeiro que lhe é reservado pelos seus 4.000 anos de tradição. Já anteriormente ressalvámos o intrincado puzzle étnico que conforma o velho Império do Meio, representando uma realidade muito diversa daquela que é a imagem interiorizada pelos europeus e americanos. Existem várias Chinas e sempre assim foi. Tornou-se também numa voraz consumidora de matérias primas, exercendo desta forma uma pressão por vezes intolerável sobre preços que afectam todas as outras economias. Investe em África e influencia as suas comunidades radicadas nos vizinhos asiáticos, estreitando laços e controlando importantes sectores, do comércio a grosso ou a retalho, até à indústria de extracção. Há que ter em conta que apesar das intervenções europeias, norte-americanas e japonesas iniciadas há perto de cento e vinte anos, a China jamais foi reduzida à condição de colónia. Tal como o Japão e a Tailândia, é o único país asiático que manteve a soberania e um Estado reconhecido pelos demais. É esta a grande diferença relativamente a todos os seus vizinhos mais próximos e que lhe permite a assunção de uma postura descomplexada em relação aos seus parceiros bárbaros, ou sejam, os ocidentais. Os portugueses desempenharam um evidentíssimo e inegável papel pioneiro na abertura da China ao mundo e Macau foi durante cinco séculos, a simples prova da boa vontade de Pequim, jamais outorgada voluntariamente a qualquer outra nação. A existência do Brasil como emergente colosso económico, pode ser uma preciosa ajuda aos esforços portugueses de penetração num mercado muito competitivo e em acelerado processo de modernização e de facto, a nossa língua é já a segunda - depois do inglês - com mais estudantes na universidade de Pequim. O património histórico estabelecido em muito sólidas bases de igualdade de tratamento - a memória chinesa é prodigiosa -, é susceptível de permitir parcerias em África e até na crescentemente importadora Europa comunitária. Simultaneamente parece ser nada negligenciável, a hipótese de um paulatino mas seguro crescimento da presença militar chinesa no mundo. Nos portos onde hoje atracam cargueiros de contentores, decerto poderemos visitar dentro de duas décadas o primeiro porta-aviões nuclear construído pela China, para "mostrar bandeira" e marcar a sua posição de potência mundial. 

O momento que vivemos é crucial e sendo Portugal uma quase micro-economia, mais esforços deverão ser feitos para a conquista por mais ínfimo que este seja, de um espaço naqueles mercados que parecem crescer de forma descontrolada. A inércia das embaixadas povoadas de amadores de cocktails, a prática inexistência de centros culturais e a quase ausência do ICEP, reflectem uma postura baseada no muito respeitável legado quinhentista, onde as caravelas, os navegadores, comerciantes de especiarias e aventureiros em demanda da fortuna, são afinal a mensagem errada de um Portugal que se quer mais dinâmico na oferta da qualidade, do bom gosto e fornecedor de selectos nichos de mercado onde uma burguesia endinheirada rivaliza com qualquer magnata norte-americano.
A confirmar a tipicidade da tradicional incúria na previsão do futuro, esteve patente no Smithsonian uma deslumbrante exposição sobre os descobrimentos portugueses, oferecendo uma vez mais a bem conhecida imagem do Portugal de outrora. A mensagem não pode - nunca é - deixar de ser positiva naquelas paragens do Novo Mundo, mas uma iniciativa semelhante noutras pontos do globo pode ter efeitos adversos, se não for acompanhada pelos novos tesouros do consumo, como produtos industriais de qualidade, desde a roupa ao calçado e até aqueles que sendo reconhecidamente tradicionais, podem despertar o desejo dos mais abastados.

Sem uma política eficaz de coordenação de prioridades e esforços de promoção, Portugal continuará a ser apenas um extravagante eco do seu passado glorioso. E para sempre perdido.

2 comentários:

cristina ribeiro disse...

Queremos mais lições destas!
Certíssimo quanto à inacção de quem tem a seu cargo a promoção do Portugal de hoje.

Anônimo disse...

Tem razão, é uma pena desperdiçarmos o nosso passado. O regime deve ser substituído por outra coisa. Democracia sim, mas não roubo mascarado de democracia. Fora com eles.