A organização do espaço da cidade expressava algumas das preocupações sócio-políticas de Le Corbusier: “o local onde o silêncio e a solidão se conjugam com o contato diário entre os indivíduos”. Em Brasília, estão alguns dos preceitos que Le Corbusier defendia de uma cidade ideal. E de verdade, tudo na capital seria perfeito e hiper-organizado, como ele queria, senão fosse justamente isso: o indivíduo.
Leiam a seguir um bom exemplo desse fato:
Brasília, 31 de outubro de 2005.
3:00 da tarde:
Vou para o trabalho dirigindo calmamente num trânsito em que se você quiser sempre chegará no horário certo. As vias retas, perfeitas, a rapidez do trânsito e o som do AIR no meu ouvido. O dia está fresco, como é raro aqui em Brasília, e o posto de gasolina estava vazio. Chego à escola e tenho que dar uma micro aula sobre Le Corbusier, Bauhaus, Gropius e afins. Me empolgo e acabo falando da casa que um dia quero desenhar com o traçado todo a “la Mies Van Der Rohe”. Lá dentro as coisas vão flutuar como no desenho dos Jetsons e algumas paredes vão ser verde água.
6:00 da noite:
Saio da escola e volto pra casa num trânsito ainda tranqüilo. O dia está totalmente bucólico, o som do AIR continua nos meus ouvidos e as pessoas em Brasília voltam para casa sorrindo sorrisos amarelos depois de mais um dia “tranqüilo” de trabalho.
A trilha sonora que ouço torna tudo alegre e verde água, e eu me sinto numa tarde dos anos 60. Passo vagarosamente olhando alguns blocos antigos e fico imaginando se “Corbu” estivesse sentado aqui, do meu lado no carro.
6:30 da noite:
Estou entrando na quadra comercial da minha super quadra. O trânsito já não é tão tranqüilo neste horário. Entre as quadras os carros se engarrafam e eu começo a olhar, ainda ao som de AIR, o “rapaz” (adoro essa palavra retrô) bonito do carro de trás que está tranqüilo ajeitando o cabelo pelo retrovisor. O som da música nos meus ouvidos está alto e tudo parece cena de filme. Numa das entradas em que estou parada, ainda olhando o “rapaz” bonito do carro de trás, avança um ônibus: ele é verde exército e tem aquele design amebóide dos ônibus antigos que carregavam soldados americanos nos anos 60.
O motorista me pede a passagem e eu cedo. Fico pensando de onde saiu aquele ônibus “retro” maravilhoso, enquanto ainda olho o “rapaz” bonito do carro de trás (ele era realmente bonito). Tudo está calmo demais, o som do AIR ainda toca nos meus ouvidos e o trânsito parece enfim avançar. É quando de repente olho pelo retrovisor lateral e vejo uma moto derrapando no chão, derrapou porque bateu de frente com uma senhora gordinha que atravessava feliz a via com seu cachorro bassê. A gordinha cai no chão derrapando também, o bassê late assustado, uma moça vem e ajuda a senhora a se levantar. O cachorro quase é atropelado por um outro carro que vem em alta velocidade. Então, os dois, cachorro e dona, vão correndo pra um dos canteiros, e eu, tenho que partir sem poder entender direito o que havia acontecido ali. Olho pelo retrovisor e vejo que o “rapaz” bonito, preocupado também, estaciona o carro em fila dupla indo ajudar a gordinha e o bassê. E eu parto para minha quadra, entro no estacionamento e pego o elevador, já sem o som do AIR nos meus ouvidos.
Pois é, tudo ia perfeito demais entre o bom contato e o mau contato, e é isso que faz da cidade "ideal" uma cidade "normal".
Le Corbusier: “Cidade ideal, o local onde o silêncio e a solidão se conjugam com o contato diário entre os indivíduos”.
Pois é, por mais que tudo pareça perfeito há sempre o contato entre os indivíduos, será que ele se esqueceu disso? Sempre que eu leio os conceitos de Le Corbusier sobre “a vida perfeita nas cidades” me lembro daqueles livros antigos de medicina alternativa, "Beba 2 litros de água, durma 8 horas por dia, caminhe, etc..." Acho engraçado ler os pré-requisitos que ele determinava para que uma cidade fosse “saudável”. E por mais que ele seja radical, às vezes é muito difícil discordar do que Corbu diz. Fico imaginando como seria conversar com ele e tentar entrar em discussão.
Le Corbusier: - As 8 horas de repouso continuado, a prática de esporte deve ser acessível a todos os habitantes da cidade. O esporte deve ser praticado bem ao lado de casa, bla, bla, bla...
Eu: - Mas senhor...Isso tudo é tão obvio, tão claro, e chato, chato demais! Eu adoro Brasília, gosto da facilidade que existe pra se chegar aos lugares (mas só quando é de carro) da ordem milimetricamente calculada das super quadras, gosto dos imensos verdes vazios e etc...Mas toda essa ordem é tão chata, tão chata quanto a voz de um médico dizendo que carne vermelha faz mal pra saúde!
Le Corbusier: - Mas escuta, todas as vezes que a linha for quebrada, interrompida, descontínua, pontuda, nossos sentidos serão afetados, dolorosamente afetados, nosso espírito se afligirá com a desordem, e pensará: ISSO É BÁRBARO! (Bárbaro de bruto mesmo).
Eu: - Eu discordo, senhor Lê Corbusier, acho muito chato ter sempre o mesmo jeito de voltar pra casa sem a possibilidade de mais outros mil caminhos. Acho chata a retidão das ruas sem um beco que apareça do nada ou uma ladeira linda e imensa que dê pra ver lá embaixo os moleques soltando pipa. Acho chato não me deparar de repente com uma rua de paralelepípedos ou uma curva que dê numa via sem saída. Definitivamente, acho chata a retidão da cidade planejada.
Le Corbusier: - Minha filha, o homem caminha em linha reta porque tem um objetivo, sabe aonde vai. Decidiu ir a algum lugar e caminha em linha reta porque é inteligente. Já a mula ziguezagueia, vagueia com cabeça oca e distraída, evita os grandes pedregulhos, busca a sombra, empenha-se o menos possível.
Eu: - Pois então meu senhor, que vivam as ruas desenhadas pelas mulas! Onde possa se vagar com a cabeça oca e distraída!
A mula é um flâneur!!! Eu sou uma mula!
Leiam a seguir um bom exemplo desse fato:
Brasília, 31 de outubro de 2005.
3:00 da tarde:
Vou para o trabalho dirigindo calmamente num trânsito em que se você quiser sempre chegará no horário certo. As vias retas, perfeitas, a rapidez do trânsito e o som do AIR no meu ouvido. O dia está fresco, como é raro aqui em Brasília, e o posto de gasolina estava vazio. Chego à escola e tenho que dar uma micro aula sobre Le Corbusier, Bauhaus, Gropius e afins. Me empolgo e acabo falando da casa que um dia quero desenhar com o traçado todo a “la Mies Van Der Rohe”. Lá dentro as coisas vão flutuar como no desenho dos Jetsons e algumas paredes vão ser verde água.
6:00 da noite:
Saio da escola e volto pra casa num trânsito ainda tranqüilo. O dia está totalmente bucólico, o som do AIR continua nos meus ouvidos e as pessoas em Brasília voltam para casa sorrindo sorrisos amarelos depois de mais um dia “tranqüilo” de trabalho.
A trilha sonora que ouço torna tudo alegre e verde água, e eu me sinto numa tarde dos anos 60. Passo vagarosamente olhando alguns blocos antigos e fico imaginando se “Corbu” estivesse sentado aqui, do meu lado no carro.
6:30 da noite:
Estou entrando na quadra comercial da minha super quadra. O trânsito já não é tão tranqüilo neste horário. Entre as quadras os carros se engarrafam e eu começo a olhar, ainda ao som de AIR, o “rapaz” (adoro essa palavra retrô) bonito do carro de trás que está tranqüilo ajeitando o cabelo pelo retrovisor. O som da música nos meus ouvidos está alto e tudo parece cena de filme. Numa das entradas em que estou parada, ainda olhando o “rapaz” bonito do carro de trás, avança um ônibus: ele é verde exército e tem aquele design amebóide dos ônibus antigos que carregavam soldados americanos nos anos 60.
O motorista me pede a passagem e eu cedo. Fico pensando de onde saiu aquele ônibus “retro” maravilhoso, enquanto ainda olho o “rapaz” bonito do carro de trás (ele era realmente bonito). Tudo está calmo demais, o som do AIR ainda toca nos meus ouvidos e o trânsito parece enfim avançar. É quando de repente olho pelo retrovisor lateral e vejo uma moto derrapando no chão, derrapou porque bateu de frente com uma senhora gordinha que atravessava feliz a via com seu cachorro bassê. A gordinha cai no chão derrapando também, o bassê late assustado, uma moça vem e ajuda a senhora a se levantar. O cachorro quase é atropelado por um outro carro que vem em alta velocidade. Então, os dois, cachorro e dona, vão correndo pra um dos canteiros, e eu, tenho que partir sem poder entender direito o que havia acontecido ali. Olho pelo retrovisor e vejo que o “rapaz” bonito, preocupado também, estaciona o carro em fila dupla indo ajudar a gordinha e o bassê. E eu parto para minha quadra, entro no estacionamento e pego o elevador, já sem o som do AIR nos meus ouvidos.
Pois é, tudo ia perfeito demais entre o bom contato e o mau contato, e é isso que faz da cidade "ideal" uma cidade "normal".
Le Corbusier: “Cidade ideal, o local onde o silêncio e a solidão se conjugam com o contato diário entre os indivíduos”.
Pois é, por mais que tudo pareça perfeito há sempre o contato entre os indivíduos, será que ele se esqueceu disso? Sempre que eu leio os conceitos de Le Corbusier sobre “a vida perfeita nas cidades” me lembro daqueles livros antigos de medicina alternativa, "Beba 2 litros de água, durma 8 horas por dia, caminhe, etc..." Acho engraçado ler os pré-requisitos que ele determinava para que uma cidade fosse “saudável”. E por mais que ele seja radical, às vezes é muito difícil discordar do que Corbu diz. Fico imaginando como seria conversar com ele e tentar entrar em discussão.
Le Corbusier: - As 8 horas de repouso continuado, a prática de esporte deve ser acessível a todos os habitantes da cidade. O esporte deve ser praticado bem ao lado de casa, bla, bla, bla...
Eu: - Mas senhor...Isso tudo é tão obvio, tão claro, e chato, chato demais! Eu adoro Brasília, gosto da facilidade que existe pra se chegar aos lugares (mas só quando é de carro) da ordem milimetricamente calculada das super quadras, gosto dos imensos verdes vazios e etc...Mas toda essa ordem é tão chata, tão chata quanto a voz de um médico dizendo que carne vermelha faz mal pra saúde!
Le Corbusier: - Mas escuta, todas as vezes que a linha for quebrada, interrompida, descontínua, pontuda, nossos sentidos serão afetados, dolorosamente afetados, nosso espírito se afligirá com a desordem, e pensará: ISSO É BÁRBARO! (Bárbaro de bruto mesmo).
Eu: - Eu discordo, senhor Lê Corbusier, acho muito chato ter sempre o mesmo jeito de voltar pra casa sem a possibilidade de mais outros mil caminhos. Acho chata a retidão das ruas sem um beco que apareça do nada ou uma ladeira linda e imensa que dê pra ver lá embaixo os moleques soltando pipa. Acho chato não me deparar de repente com uma rua de paralelepípedos ou uma curva que dê numa via sem saída. Definitivamente, acho chata a retidão da cidade planejada.
Le Corbusier: - Minha filha, o homem caminha em linha reta porque tem um objetivo, sabe aonde vai. Decidiu ir a algum lugar e caminha em linha reta porque é inteligente. Já a mula ziguezagueia, vagueia com cabeça oca e distraída, evita os grandes pedregulhos, busca a sombra, empenha-se o menos possível.
Eu: - Pois então meu senhor, que vivam as ruas desenhadas pelas mulas! Onde possa se vagar com a cabeça oca e distraída!
A mula é um flâneur!!! Eu sou uma mula!
3 comentários:
Concordo, Chris, um bocado de improvisação e de surpresa também fazem os nossos dias...
E eu sou outra mula, Chris... :)
Chris, a verdade é que uma cidade milimetricamente planeada, não passa de uma colossal seca sem charme! Havia de visitar aquilo que construiram em Lisboa e que dá pelo nome de Expo. Grandes edifícios, centro comercial, passeios pedonais à beira do Tejo, restaurantes, parque de exposições, enfim, uma mini cidade do futuro. um sítio onde eu seria incapaz de viver. Desenraizamento, falta de patine, de referências. Corbusier, Speer, Rohe, nein Danke...
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