segunda-feira, 9 de junho de 2008

10 de Junho: o que foi, o que é e o que poderia ser.


Iniciavam-se os preparativos alguns dias antes da comemoração. Logo de manhã, lá das bandas do quartel da Rua de Nevala, vinha o inconfundível som do rufar de tambores, ao mesmo tempo que o ar se enchia com as fanfarras das marchas que cadenciariam o passo dos soldados em parada. Toda a zona compreendida pela Sommerschield e pela  24 de Julho - a Polana -, habituara-se aos sons marciais que antecediam a festa nacional. As crianças já estariam de férias e disponíveis para emoldurar a Avenida D. Luís I (1) com as suas bandeirinhas, ocupando as primeiras filas dos curiosos espectadores que ritualmente ali regressavam todos os anos. 
Eu e o Miguel acordávamos cedo e vestíamos o uniforme, para logo depois partirmos em direcção à Baixa, à procura do melhor local para assistir à parada. Portugal estava em guerra e a parada militar do 10 de Junho consistia numa evocação dos grandes feitos de outrora, perpetuados no nosso imaginário por aqueles milhares de soldados que diante de nós desfilavam. Recordo-me perfeitamente do bater sincopado das hélices dos helicópteros, do aspecto rutilante das viaturas que desfilavam - os camiões com soldados de luvas brancas e os jeeps com pneus polidos, ostentando as vistosas listas brancas em redor das jantes -, tudo impecável, desde as inúmeras bandeiras dos regimentos, até à banda que tocava marchas a que já nos habituáramos, embora nem lhes conhecêssemos os nomes ou a autoria. Curiosamente, muitos anos depois soube que uma delas, sempre tocada até à exaustão, é a prussiana Alte Kameraden que continua a ser uma das preferidas do repertório das fanfarras do exército. 
O momento alto do desfile estava reservado à cavalaria e o ruído metálico produzido pelas bestas que trotavam  avenida abaixo, deixava a miudagem encantada, acenando freneticamente à passagem muito simbólica de um nostálgico passado que teimava em resistir. A grande ovação do público era sempre dedicada às tropas especiais (1), aquela "gente capaz de todos os sacrifícios e de grandes feitos", tal como ouvíamos dizer na escola.  Chamavam a atenção pelas cores vistosas dos lenços ao pescoço - amarelos ou vermelhos -  e luvas brancas, contrastando  com a sobriedade do uniforme camuflado. Eram na sua maioria, soldados negros.
Durante o dia ocorriam outros eventos e cerimónias de cariz vincadamente político - no Estádio Salazar, na Machava - às quais o nosso pai evitava sempre que fossemos, embora teoricamente tivéssemos que nos apresentar uniformizados e enquadrados pela escola. Terminada a parada na Avenida, voltávamos para casa e era quase certa uma ida à praia depois do almoço, quando o sol já não garantisse as inevitáveis e dolorosas queimaduras do meio dia.
O último 10 de Junho a que assisti foi o de 1973 e depois, subitamente, tudo desapareceu.
                                                               * * *
Amanhã é 10 de Junho, dia de Portugal e das Comunidades. Das cerimónias oficiais, pouco há a dizer, sabendo todos ser mais um dia de troca de amabilidades entre os detentores dos cargos políticos, aproveitando-se a oportunidade, para a imposição de condecorações mutiladas (2)  a um imenso rol de incógnitos que garantiram a sua condição de Nobreza da República, por desconhecidos mas decerto preciosos serviços prestados a quem de direito lhes confere as mercês. Os banqueiros, grandes construtores, os correctores, as sumidades desta e daquela Faculdade, o deputado e o amigo eleitoral, o ex-ministro e hoje gestor de ex-empresa pública, todos, todos eles, ascenderão à titularidade de Comendador ou Cavaleiro, numa paródia aos cerimoniais de antanho em que as grã-cruzes eram geralmente concedidas por reconhecidos serviços dos quais a sobrevivência da Pátria dependera. A 250 contos a peça, a Ordem mutilada (2) pretende hoje recompensar simbolicamente o peito que a recebe e isso é por si, um fim e uma forma de distinção e alarde de comprometimento. É legítimo e normal.
Paradas militares, emulando o 14 de Juillet em Paris, o Trooping the Colours em Londres, ou a Fiesta de la Bandera de Madrid, são coisas desconhecidas por cá e quando existem, cobrem as FA com as humilhações decorrentes da falta de meios, com os inevitáveis e obsoletos tanques avariados,  ou "presidentes" de semblantes carrancudos e possivelmente contrariados por homenagear aqueles a quem verdadeiramente devem o lugar. Em Portugal nem sequer temos uma festa civil como os anos da rainha da Holanda! As autoridades limitam-se às habituais trocas de fosquinhas entre si, esquecendo a ralé, nós, o povo.
No processo de de feroz liquefação  do corpo nacional na misturadora de economias e de nações que se conhece pelo prosaico nome de União Europeia, o 10 de Junho perdeu todo o significado identitário e tornou-se numa incómoda data que se torna imperioso distinguir como feriado: a potencial fúria popular assim o exige e se hoje passearmos pelas ruas de cidades, vilas e aldeias, compreenderemos o porquê dessa comemoração. O povo pede-a e quer. Hábil e subrepticiamente liquidado o 1º de Dezembro como incómoda data que nos remete para a ilegitimidade de certas situações a que passivamente nos habituámos, o 10 de Junho torna-se instintivamente na desforra dos pobres e dos fracos que gostosamente viram as costas aos senhores do momento e que vibram - sem sequer saberem porquê -, com a sua nacionalidade e com os seus símbolos velhos de muito séculos. A televisão mostra-nos a alegria popular pela festa nacional, mesmo a milhares de quilómetros de distância: os portugueses que residem ou já nasceram no estrangeiro, são afinal os depositários de um Portugal que teima em não desaparecer na voragem dos míseros interesses da grande economia global, do esquecimento daquilo que fomos e que poderíamos voltar a ser. Industriosos e honestos, civilizados e cumpridores da Lei que os acolheu e protege, os nossos emigrantes são uma reserva da nação. Saibamos honrá-los e compreendê-los.
O regime encontra-se completamente exausto e vazio de ideias mobilizadoras, porque não as pode ter, é contrário ao ethos. Nem a generosidade própria das democracias é sequer considerada de forma simbólica: o 10 de Junho em Portugal, podia transformar-se também, num dia ansiosamente esperado por tantos que aqui residindo e honestamente trabalhando, nos adoptaram como povo, como parte sua e destino: podia ser o dia de uma emotiva cerimónia de concessão da nacionalidade (3). Quantos dos nossos antepassados aprovariam entusiasticamente essa prova de grandeza?!

(1) Na imagem, a Av. D. Luís I, na antiga Lourenço Marques, hoje Maputo (clicar sobre a foto, p.f.)
(2) Condecorações mutiladas: aquelas que foram adulteradas pelo regime de 1911.
(3) Bem merecem uma compensação pelas grosserias e vexames sofridos quotidianamente no aeroporto e no SEF.

4 comentários:

José M. Barbosa disse...

De acordo, mas não vai acontecer por geração espontânea ...

cristina ribeiro disse...

Uma bela evocação, Nuno; quanto ao resto, como dizia, o ano passado, na caixa de comentários doutro blogue: mais um Dia de Portugal sem alma...

Anônimo disse...

Eu e o Tomo estivemos em maputo o ano passado e gostámos imenso da terra, só é pena que esteja tudo mal estimado. Oh Nuno, devia ser bom crescer por lá como te aconteceu a ti e ao teu irmão. Sol e praia e muito espaço para brincar.
Isabel Moreira

António Bastos disse...

Parabens pela evocação e pela análise da situação actual. O regime está de facto totalmente esgotado e arrasta-nos para um buraco negro.