sábado, 21 de junho de 2008

A Verdade da História. 1. O Ultimatum de 1890. 2. O Ultimatum à França (Fachoda).


Um dos temas recorrentes dos detractores da Monarquia Constitucional, é invariavelmente, o chamado Ultimatum de britânico de 1890. Apresentam a resolução do conflito como uma inadmissível cedência perante a prepotência da Pérfida Albion, não procurando uma explicação para a difícil situação criada pela cedência à megalomania do espírito da época e da incipiente opinião pública dos cafés e tascas de Lisboa. 
Nos finais do século XIX e apesar do seu apogeu imperial, a Grã-Bretanha, via despontar na cena internacional um perigoso contendor - o Império Alemão -, que mercê da ocupação de um espaço territorial central na Europa e de um arranque industrial sem precedentes, ascendia à condição de grande potência continental com legítimas pretensões à obtenção de um lugar ao sol na partilha colonial. A nova realidade que a abertura de mercados propiciou às sociedades industrializadas na Inglaterra, Alemanha, França ou Bélgica, impeliu à criação de uma miríade de sociedades e companhias de índole comercial e colonial, que passaram a encarar o continente negro como uma clara possibilidade de expansão e obtenção de vultosos lucros propiciados pela extracção de matérias-primas e estabelecimento de entrepostos europeus. As próprias inovações tecnológicas - a electricidade, as armas automáticas, os caminhos de ferro ou os avanços da medicina - , aliavam-se ao espírito positivista da época que via o homem branco, como o promotor da civilização de gentes entregues ao primitivismo tribal e a incompreendidas formas de organização social, política e económica. 
No período de consolidação do sistema liberal-parlamentar - a Regeneração -, deu-se  em Portugal um relevante arranque na modernização de infra-estruturas que abriu o país às novidades materiais do século. Simultaneamente,  entravam também as obras de cariz científico e lúdico que entusiasmaram leitores de uma geração que ansiava pela restauração do prestígio e poder, obras essas onde o espírito de aventura, o denodo dos valorosos e a consagração de novos heróis, era susceptível de estimular ímpetos que prolongassem uma vez mais no ultramar, o já longínquo destino aberto pela epopeia dos Descobrimentos.
Após a criação da Sociedade Livre do Congo, Portugal teve a necessidade de negociar com poderes imperiais que almejavam ao rápido estabelecimento de zonas de influência em África e sendo o aliado preferencial da Inglaterra, conseguiu no difícil jogo de equilíbrio, uma inicial benevolência britânica quanto ao domínio da desembocadura do rio Congo. Sendo este a principal via de penetração na África Central, a pretensão portuguesa - baseada no argumento dos direitos históricos -, foi de imediato contestada por franceses, belgas e alemães que  pretendiam a partilha da bacia do Congo em áreas de influência. Os ingleses, visando o reconhecimento internacional dos seus interesses na África do Sul - onde as repúblicas boéres consistiam num permanente ponto de contestação aos desígnios expansionistas de Londres -, viram-se obrigados a contemporizar com os seus concorrentes e deixaram de apoiar as desmedidas pretensões portuguesas ao total domínio da zona. Reagindo, Portugal solicitou a realização de uma conferência internacional - o Congresso de Berlim - que viria afinal, a reconhecer o princípio da ocupação de facto de territórios, em detrimento de direitos históricos jamais formalmente aceites por todos.
A propósito das possibilidades portuguesas no momento da "corrida a África", Andrade Corvo escrevia: ..."a este propósito parece-nos oportuno - embora seja mal visto para os que sonham com impérios sem limites, não pensando um instante em melhorar o que é realmente nosso, nem na força que é necessária para dominar e defender territórios vastíssimos-, lembrar quanto é perigosa a fantasia, quanto é pouco prudente a pretensão de supormos nossa toda a África Central e Austral, de um a outro mar" (1)... Segundo este ministro, a estratégia portuguesa devia consistir  em ..."abrir largamente as portas ao comércio, às actividades de todos os géneros, seja qual for a sua procedência; atrair por todos os meios de sedução a emigração nacional ou estrangeira, europeia ou asiática; varrer todos os monopólios, seja qual for a marca com que se disfarcem, ou os pretextos por que busquem justificar-se; fazer, especialmente, concessões aconselhadas pela prudência, que não tolham em caso algum a livre concorrência; são regras que a razão e a experiência, nossa e estranha, estão aconselhando por numerosos exemplos e prósperos resultados"...  Consciente dos perigos decorrentes do envolvimento de Portugal nos complicados e perigosos jogos de alianças na Europa, Andrade Corvo salientava ainda,  que ..."as tradições da nossa política e os importantes e valiosos interesses que nos unem à Inglaterra são poderosas razões, para que não deixemos afrouxar os vínculos de aliança que nos unem àquela potência"... e que Portugal, sendo uma potência de segunda ordem,  ..."além de bom governo, boa política e boa administração, precisa de boas alianças"..., no nosso caso, o poder marítimo dominante: o Reino Unido.
Na década de oitenta do século XIX, a generalidade dos políticos e da opinião pública portuguesa, apoiava ansiosamente qualquer projecto que visasse o mitigar a influência britânica e entusiasticamente passou a ver nos reivindicadores da criação de um novo Brasil em África - o Mapa Cor de Rosa -, os firmes esteios da libertação daquela tutela. Contudo, as forças em confrontos eram ainda poderosamente favoráveis à Inglaterra. Derrotada pelos alemães em 1870-71, a França  era uma potência continental que necessitava da Rússia como contraponto à hegemonia militar da aliança germano-austríaca das Potências Centrais, na qual participava ainda a também recentemente unificada Itália. A Royal Navy era ainda o poder marítimo supremo em todos os oceanos do planeta, manifestando uma esmagadora superioridade de efectivos e de argumentos técnicos em presença. Qualquer pretensão de domínio colonial, teria que forçosamente contar com o beneplácito britânico. 
Seguindo alguns indicadores económicos e a nova mas enganadora relação de forças apresentada pelo grande bloco que se constituíra na Europa Central, o ministro Barros Gomes julgou azado o momento, para uma aproximação ao poder continental dominante - a Alemanha -, que manifestava interesse em contestar aos ingleses o seu predomínio em amplas zonas da África Austral. A existência de o sempre latente conflito anglo-boer, seria para Barros Gomes, outro motivo para aquela aproximação, criando dificuldades às reivindicações britânicas na área e propiciando a possível criação de uma grande colónia portuguesa que servisse de "Estado tampão" entre os poderes imperialistas em disputa. Contudo, o estado de acelerado desenvolvimento e organização das companhias majestáticas britânicas na África do Sul, conduziu ao alinhamento da política do governo britânico com as pretensões daquelas, onde pontificava o aventureiro Cecil Rhodes, talvez o protótipo do empresário aventureiro dos finais do século XIX ao serviço de um desígnio imperial. 
O efervescer e radicalizar dos "centros de opinião" lisboetas - as sedes partidárias, os cafés do Rossio e a Sociedade de Geografia - , também condicionados pela demagogia do minoritário partido republicano, impeliu o governo à formal apresentação das reivindicações portuguesas sobre o hinterland austral, seguindo-se o envio de ordens para a apressada celebração de tratados com os potentados locais que colocassem amplos territórios sobre nominal soberania portuguesa.  Conhecedor da realidade no terreno e do perigo que representava para a Inglaterra o ruir do seu projecto Cabo-Cairo - e procurando cercear as veleidades independentistas das repúblicas boéres -, o governo britânico reagiu. O Ultimatum de 1890 deixou o país numa situação muito difícil, pois o projecto de Andrade Corvo teria sido susceptível de tranquilizar a posição britânica, obtendo mais vantagens territoriais e até uma prevista ligação fluvial entre Angola e Moçambique. Nos meses imediatos à nota de Londres, o Parlamento rejeitou um acordo que incluía essa ligação pelo Zambeze e ainda assim, os britânicos cederam uma parte do planalto de Manica, permanecendo sob soberania portuguesa Lourenço Marques e amplos territórios que o país custosamente ocuparia, dada a exiguidade de possibilidades demográficas e económicas. A pergunta que legitimamente se coloca é a seguinte: o que teria sucedido se o governo de Lisboa, pressionado pela histeria das ruas, não tivesse emitido as ordens que acabou por enviar para Moçambique?  A resposta parece ser, como é óbvio, a efectivação de uma decidida intervenção militar inglesa e a consequente ocupação da maior parte dos territórios ultramarinos portugueses. O que o Ultimatum deixou a Portugal, consistiu afinal numa extensíssima propriedade imperial, de uma dimensão absolutamente desproporcionada para o real poder de um país que beneficiou de uma situação muito privilegiada, se a compararmos com as rivais Alemanha e Itália. Se à época não aconteceu o definitivo ocaso da aventura ultramarina nacional, tal se deveu exactamente, ao desejo britânico de não entregar importantes parcelas africanas a potenciais inimigos, mantendo-as assim, na sua esfera de influência. O perigo da perturbação do equilíbrio europeu, a moderação aconselhada pela rainha Vitória e o desejo da obtenção de um modus vivendi  com o tradicional aliado português - onde D. Carlos I iniciava o seu reinado -, conduziram directamente à possibilidade das campanhas de ocupação, onde efectivamente, Portugal procedeu a um esforço sem precedentes e perfeitamente consagrado pelo êxito militar que espantou as potências, algumas das quais, como a Itália na Abissínia  e a própria Inglaterra na Zululândia e no Sudão, foram derrotadas por  exércitos nativos. A renovação da aliança luso-britânica e o bom entendimento estabelecido entre D. Carlos e os ingleses, impediram o esbulhar do património nacional, que chegaria praticamente intacto até 1975. Não se limitando à zona central de Moçambique, as campanhas de pacificação estenderam-se a Angola e ao Estado da Índia, criando novos sonhos de grandeza numa população urbana que aguardava ansiosamente a chegada das expedições, como uma prova do valor e pujança da Pátria. Foi a época de todas as ilusões e de todas as esperanças. A baixa política, a demagogia infrene e a violência iconoclasta daquele tempo, em breve conduziriam Portugal a uma situação de desesperada anarquia, ruína económica, prepotência partidária e ao século XX que bem conhecemos. Foi esta a verdade do Ultimatum. Tudo o mais, é mero objecto do desconhecimento e da paixão partidária.

(1) O Mapa Cor de Rosa

A seguir: o Ultimatum britânico à França: o episódio de Fachoda e a capitulação de Paris.

5 comentários:

Pedro Fontela disse...

Quer dizer... que houve uma humilhação nacional houve. A questão é se alguém poderia ter evitado a crise e nisso estou de acordo com o texto: abdicar dos direitos históricos era algo absolutamente inevitável.

Nuno Castelo-Branco disse...

Humilhação é o desporto nacional há muito tempo! Quando a direitos históricos: isso é mais "estória" que história, não achas? :)

Pedro Fontela disse...

Em papel sempre foram nossos lol agora se realmente poderiamos reclamar aquilo tudo... enfim... :)

Nuno Castelo-Branco disse...

A nossas gente sempre teve mais olhos que barriga. Esta semana também engoli o sapo...

Anônimo disse...

Texto excelente. Já não lia, na blogosfera, há muito tempo, um texto tão interessante. Tomei a liberdade de lhe enviar, por e-mail, um ensaio biográfico sobre Serpa Pinto, da minha autoria, que será lançado no final deste mês. Como deve saber, Serpa Pinto esteve na linha da frente dos prinicpais confrontos diplomáticos e mesmo físicos com as ávidas potênciais...
cumprimentos!