sábado, 14 de junho de 2008

Cavaco e Sócrates: o engasgar dos gémeos


Distraídas as atenções portuguesas pela epopeia helvética da Selecção, passou praticamente despercebida a inconcebível posição do "Venerando Chefe do Estado", relativa ao resultado do referendo irlandês. Não me querendo pronunciar uma vez mais pela claríssima parcialidade intrínseca ao cargo que ocupa - e que desejo ver extinto quanto antes -, saliento a visível irritação do prof. Cavaco Silva. Este abespinhamento deve ser hoje comum a muitos detentores de cargos semelhantes, pois habituados a tudo decidir sem ninguém consultar, desta vez não lhes foi possível impedir os irlandeses de exercer cabalmente a sua soberania. O argumento desonesto e absolutamente falacioso da "Europa em Perigo" - sempre repescado de outros tempos e de outras situações -,  surge hoje como arma de derradeiro recurso para a subversão de uma decisão absolutamente clara e democrática. Remete-nos exactamente para aquele outro referendo no qual os dinamarqueses também disseram Não, para pouco depois e mercê de clara e vergonhosa chantagem, serem forçados à submissão.

Antes de tudo, o Não consistiu na desforra da imensa maioria silenciosa que em todos os países membros da U.E. observa com receio, a constante ingerência da burocracia tentacular exportada de Bruxelas. A intromissão nos mais ínfimos assuntos, a monomania organizadora de pequenos tudos e grandes nadas, tem depredado sem remédio, a construção de uma União que ainda há poucos anos surgia como oportunidade de progresso, paz e solidariedade. A permanente suspeita de controle do aparelho do Super-Estado U.E. pelos bem identificados poderes económicos, a evidente manipulação do quotidiano por agressivas políticas plutocráticas e descaracterizadoras daquilo que todos entendemos dever ser a Europa, minaram irremediavelmente a reputação de comissários e governos. 

Esta Europa que herdou as ruínas de 1945; esta Europa que conseguiu reconstruir-se e tornar--se num exemplo para o mundo; esta Europa que soube encontrar além-mar o protector que lhe permitiu organizar-se de forma mais justa, remetendo a tirania soviética e o comunismo para o caixote das imundícies da História, é exactamente a mesma entidade transnacional na qual dezenas de povos e nações independentes se revêm. É a Europa das Nações que tendo ao longo de mais de um milénio consolidado a consciência das múltiplas identidades que a compõem, não pretende a sua dissolução numa aparente pluriarquia de burocratas, banqueiros e especuladores de alto coturno. A revolta latente que grassa de Lisboa a Varsóvia e de Estocolmo a Roma, irmana antigos inimigos históricos que hoje descobrem o que afinal está em causa e é importante: a preservação de tudo aquilo que consideram seu património inalienável, como a justiça, a equidade e a garantia do respeito pelo sufrágio livremente expresso.

Cavaco Silva e José Sócrates foram também derrotados, pois se o primeiro sempre amargamente se manifestou contra qualquer tipo de consulta referendária  - Maastricht foi um precedente -, o segundo arrepiou o caminho de promessas feitas durante os meses da última campanha eleitoral. O abuso da interpretação enganadora, a mentira, o rasgar unilateral do pacto estabelecido com os próprios eleitores e a arrogância derivada do mau perder e consciência do potentado da arrogância, irmana os detentores dos dois mais relevantes órgãos de soberania. O argumento intimidatório é o recorrente e tristemente célebre vil metal. Vão ameaçar os reticentes com negros quadros de recessão e de desemprego, agitando o espectro sino-indiano, a perda de influência no mundo e o anunciado colapso empresarial. É este último afinal, aquele que mais se aproxima das suas reais preocupações, pois o lucro a todo o transe - e que reconhecemos ser o móbil da economia -, trucida os extractos sociais não empresariais, arruina a periodicamente necessária intervenção do Estado e distorce o verdadeiro progresso material que deve ter como base a inovação e a produção de novas tecnologias e atractivos produtos capazes de responder à constante demanda do mercado, num âmbito de segurança laboral e justiça na repartição.  A vertigem do terciário e da especulação - seja ela bolsista ou imobiliária -, corroem os alicerces da confiança dos povos na U.E.  A deriva imperial, a construção de uma Europa-fortaleza à procura de um lebensraum nas suas margens, assusta a generalidade dos cidadãos de cada um dos Estados membro. 

Urge respeitar a decisão irlandesa e reconhecer o primado da Europa das Nações, já visionada há noventa anos pelos soldados que regressaram vencedores ou derrotados, das trincheiras da I Guerra Mundial. Esta Europa de bancos, bolsas, off-shores, cartéis e conluios da casta politiqueira que atravessa o continente de lés a lés, deve pensar na sua própria sobrevivência. No horizonte surgem negras nuvens e uma simples brisa pode transformar-se num furacão. Um novo e espontâneo 1848 teria consequências imprevisíveis. Pode eclodir de forma súbita e fulminante e então será tarde demais. Sem pena e no meio de clamorosas chufas, assistiremos a apressadas fugas dos hoje todo-poderosos que varridos da história, nada mais serão que folhas secas de uma outrora colossal  árvore inesperadamente tombada. 
O que virá depois?

3 comentários:

Pedro Fontela disse...

Nuno,

Quando isto começar a ser a Europa do parlamento europeu em vez da comissão europeia irá começar a ter mais apoio por parte da população - isto sem negar que actualmente as instituições europeias estão a sofrer com a situação economica que torna os estados naturalmente mais egoistas e menos dipostos a embarcar em projectos idealistas que são essenciais. O que falas da Europa das nações palpita-me que, felizmente, é um barco que já zarpou... nunca voltaremos a ser isso e como disse o Samuel num post um pouco mais abaixo deste se voltasse a esse estado fragmentado iria ser o colapso final do Ocidente.

Anônimo disse...

Creio ter percebido o que quis dizer com a Europa das Nações e não me parece que isso signifique o fim do Ocidente. pelo contrário, reforça-o. Esmagados pela Alemanha, França e Espanha? Não.
Concordo com o que disse.
Pedro Matias
Lisboa

Nuno Castelo-Branco disse...

Pedro, deixa passar algum tempo e veremos no que tudo isto dá. Tenho muitas dúvidas acerca da viabilidade do federalismo. Aliás, tenho a certeza de que não será facilmente aceite. À força? Isso é outra coisa.