terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Tempestades e cheias - a minha experiência contada na 3.ª pessoa

Mais um fatídico dia de trabalho havia passado. Chega a casa pela 1h da manhã e, como habitual, liga o portátil. Verifica os e-mails, continua o projecto de actualização do design do blog. Com os Sony MDR V-500 nos ouvidos escutava o álbum de remisturas lounge de Tom Jobim. Nisto, são 4h da manhã quando pelas frestas nos estores da janela do quarto que dá para a Rua de Macau nota um raio de luz branca que subconscientemente ignora. Pouco depois toda a casa estremece, e dá um salto da cadeira. A água precipita-se de forma incessante enquanto uma forte trovoada continua a fazer estremecer a casa.

Com um simples clique de rato interrompe a música. Retira os auscultadores para ir à casa-de-banho e nota um qualquer barulho intermitente como o bater de dedos numa mesa de madeira. Olha para o lado, nada. Olha para cima e vê o impensável: uma infiltração entre a madeira da janela e a parede. Azar dos azares, estava a pingar directamente em cima do antiquado monitor CRT de 15 polegadas que está ligado ao desktop, também logo por baixo. Apressadamente retira o monitor, a torre, a mesa de mistura, rato, teclado, livros, papéis, cds, e coloca-os na outra ponta do quarto. Percorre a casa numa desenfreada busca por alguidares que permitam recolher a água. Limpa o que é possível. A chuva pára. Vai dormir tentando não pensar muito no assunto.

Acorda no dia seguinte, e arruma tudo novamente. Aponta um secador de cabelo durante alguns minutos em redor dos orifícios do monitor.

Liga tudo. A torre está ok, a mesa de mistura também, o rato e teclado também. O monitor exibe uns riscos na diagonal e a imagem está completamente branca exibindo pontos com marcas como se estivesse queimado.

Ele sabe que há quem tenha tido prejuízos avultados com imóveis completamente inundados e automóveis submersos, bem mais prementes que a sua simples e egoísta preocupação. Mas ainda assim pensa, "e agora quem me vai pagar o prejuízo?"

A senhoria fala com o administrador de condomínio que diz que não tem nada a ver com isso e que não tem culpa que os senhores do 3.º andar não deixem lá entrar ninguém para fazer obras. Esses comprometeram-se a limpar os canais de escoamento de águas. Não o fizeram e os excrementos dos pombos entupiram os canais. Nos diversos andares do prédio ocorreu o mesmo, infiltrações entre a madeira das janelas e a parede.

Ocorre-lhe que de facto o português é o expoente da chico-espertice e que tem uma imensa aversão a responsabilidades, como bem demonstra o fenómeno da fuga aos impostos. A Lei a pouco ou nada obriga, e as reuniões de condomínios também pouco ou nada resolvem.

Pensa que não dormiria descansado se acaso tivesse culpa ou responsabilidade no prejuízo imputado a alguém, que logo tentaria minorar, até porque é apologista de que devemos sempre enfrentar as consequências dos nossos actos, e não tentar imputá-los a outros ou imiscuir-nos de responsabilidades.

Já assim o fez diversas vezes, como quando perdeu o Código Civil que uma colega de faculdade lhe havia emprestado. Apresentou-se perante essa com o semblante carregado e tentando desculpar-se pelo sucedido, que a mesma colega desdramatizou. Logo a ressarciu do prejuízo com o valor pecuniário do mesmo.

Nos empregos ou trabalhos por que passou sempre que cometeu algum erro apressou-se a assumi-lo para que pudesse o mais rapidamente ser colmatado sem prejuízos de maior para a entidade patronal, e quando responsável por estagiários ou colegas sempre os tentou fazer compreender que assim deveriam fazer para evitar que tivessem mais trabalho com algo que era inicialmente simples.

É neto de um cavalheiro como já há poucos, alguém que sempre viveu como pensa para evitar pensar como vive, e que talvez por isso não viva hoje tão bem como poderia se tivesse também enveredado pela chico-espertice típica do português, de que também ele tantas vezes foi vitíma. O avô materno que infuencia a sua personalidade de tal ponto que a própria mãe lhe chegou a dizer que "gostas mais do teu avô do que de mim".

Esse avô que ainda há pouco tempo quando regressava das compras deixou cair uma garrafa de azeite que se partiu na via pública de uma pequena vila. Como bom sagitário perfeccionista, tal como o neto, logo ficou irritado consigo próprio e dirigiu-se apressadamente a casa para deixar as restantes compras, enquanto a preocupação lhe assolava a cabeça "se ali cai alguém terei que imediatamente pedir desculpa e agir se necessitar de ajuda médica".

Apressou-se a regressar, pronto a ficar junto do azeite derramado no passeio e indicar às pessoas que passassem por ali para contornarem o local, enquanto pelo caminho pensava numa forma de resolver a situação, pois limpar azeite de calçada portuguesa é coisa pouco fácil. Não foi necessário, o lojista em frente do local do sucedido, por sinal presidente da junta de freguesia, já havia ligado aos funcionários a pedir que ali colocassem cal para secar o líquido e descansou-o, não sem que antes se desculpasse pelo sucedido e expressasse um sentido agradecimento pela rápida acção tomada.

Este é um exemplo de um traço de personalidade directamente herdado pelo neto.

Lamenta que os outros não se pautem pelo mesmo.

Neste país nunca ninguém tem responsabilidade por nada.

P.S. - Acontecimento narrado na 3.ª pessoa por alguém que tentou não pensar muito no sucedido e que desta forma ainda acha ilusoriamente que foi ficção. Vai voltar a ligar o monitor e esse há-de funcionar. Ou não.

2 comentários:

Nuno Castelo-Branco disse...

Deves viver no planeta do Principezinho e não na Terra.

Samuel de Paiva Pires disse...

Entretanto desci à Terra. Vou ter que escrever uma carta para a administração do condomínio, mas como em tudo, duvido que resolva alguma coisa.