quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Sapateados, Zapateros e espanholadas noche fuera

Hoje sinto-me belicoso. Tal não se deve a qualquer notícia do telejornal, conta para pagar ou birra. Na verdade, ontem organizei um pequeno jantar para uma amiga de Madrid que, de férias em Lisboa, trouxe consigo dois "chicos" como acompanhantes. De tchicos* (escreverei tal como eles pronunciam as palavras) tinham muito pouco, pois tratava-se de dois exemplares acabados do marmanjão muito senhor de si, organizado e aquilo a que eu costumo chamar "betus ibéricus", uma subespécie que abunda para cá dos Pirenéus.

O jantar estava bom, confesso, e a conversa iniciou-se de forma aprazível, como convém. Zapateristas ferrenhos, passaram longos momentos a tecer loas à transcendência da sua gubérnáción*, ao diálogo, abertura, enfim, o recorrente discurso a que por cá também nos habituámos. Estes dois espanhóis - um catalão e outro castelhano -, não são propriamente uns pobres diabos das claques do Barça ou do Real Madrid. Enquanto um é professor no liceu, o outro desempenha funções na diplomacia do país vizinho. Apresentados os currículos, a conversa parecia prometer e ajudar-me a aliviar certos preconceitos - pelo menos considerava-os como tal - que quase todos os portugueses enraizaram a respeito destes primos um tanto distantes no tempo e na história.

O verdadeiro problema teve início, quando se começaram a fazer sentir os efeitos do bom vinho. Copiosamente regados, os dois convivas - digo dois, porque só eles falaram à mesa -, iniciaram o famoso discurso de apresentação das vantagens da união ibérica. O mais curioso, é que as vantagens se resumiam apenas ao lado Êpanhol*, porque no que a Portugal diz respeito, nada de proveitoso foi dito. Colocando algumas questões, manifestei uma certa curiosidade acerca da forma como eles encarariam um tal processo de unificação e não fui surpreendido, quando se tornou evidente de que se trata de uma pura e simples anexação sem condições! A todos os argumentos colocados, encontram resposta pronta. A língua portuguesa, logicamente seria marginalizada e de forma muito simples, dada a facilidade que temos para aprender outros idiomas. As nossas leis e ordenamento territorial, submeter-se-iam ao esquema delineado pela Constituição espanhola e nem sequer Portugal existiria como entidade, pois seria dividido em quatro regiões autónomas continentais e duas insulares. A depredação do nosso património é um dado não negligenciável, uma vez que a África Lusófona, terá para eles, o mero interesse comercial que lhes dita a conveniência das suas empresas. Nada mais.

Pensei que as rivalidades entre castelhanos e catalães, pudessem de qualquer forma, mitigar ímpetos que outrora bem conhecemos. Uns copos de tinto, afogam num ápice, todas as querelas - que verifiquei serem de simples disputa tributária - e ameaças de secessão. A agressividade, o espalhafato intrínseco, a certeza absoluta de certas convicções - para as quais Cervantes bem alertou -, pairam acima dos eflúvios vinhosos, como nuvem ameaçadora. É que aqueles senhores, um dos quais é diplomata, pouco ou nada conhecem do mundo e menos ainda, do seu vizinho mais próximo. A ignorância é espantosa, roçando o achincalhamento daquilo que pensávamos ser o ensino em Êpanha*. Esgravatando ao de leve o passado de conflitos de interesses que fizeram eclodir constantes guerras entre os dois países, podemos facilmente concluir que a visão maniqueísta e desdenhosa que do nosso país têm, atinge dimensões verdadeiramente assombrosas. O simples exemplo da Guerra da Restauração, é por eles explicado como uma total ausência da presença portuguesa nos campos de batalha, infestados, isso sim, de ingleses, franceses e holandeses. E não se ficam por aqui. Com o ar mais sério deste mundo, foram grunhindo enormidades acerca do poderio do reino, desde a sua inigualável e poderosa frota, até ao verdadeiro peso que tem nos destinos mundiais. Pareciam dois russos pré-Perestroika e a verdadeira trovoada de arrotos de postas de pescada, não cessava. Tudo é por lá inacreditavelmente superior, desde a Pintura, até à Música, debitando, claro está, créditos aos senhores Gaudi, Calatrava e Bofil. A mão êpanhola*, conduz a humanidade à perfeição. Incrível, só visto! Nem as suas antigas colónias, vistas como países sem razão histórica e política de existir, são poupadas ao vendaval de desprezo avassalador: os índios da América do Sul, não passam de chinchetas (alfinetes de escritório), cujas caras achatadas denunciam de imediato a impossibilidade de organização como nações. Os mexicanos, eses gorditos , servem apenas para garantir a preponderância da língua espanhola, nuns Estados Unidos em acelerado processo de hispanización*.

E poderia continuar a descrever este pretenso jantar-comício, durante horas. Os homens não se calavam e nós, pobres portugueses mudos de espanto, ouvimos com curiosidade redobrada. Na verdade, o pior foi o entremear do discurso, com a habitual gritaria da sua musica précioça*, que finalmente nos fez render à evidência: a língua é cavernosa e roça bastante aquilo que designamos como pirosa. O ruído canoro, com os ay ay ay ay ayyyyy, acompanhado pelo infernal clapaclapaclap das palmas, nada tem de comum connosco. Aquela pose de mão na anca e queixo erguido, entre o toureiro e um goyesco retrato de Fernando VII, espelha bem o que lhes vai na alma. Ficámos todos elucidados. São incorrigíveis. Vivem convencidos da sua incomparável grandeza e entretanto, não compreenderam que o mundo mudou.

Embora a chamada classe empresarial teça os habituais e interesseiros elogios a uma tal "União Ibérica", os políticos - porventura tentados a uma saga de tamanho jaez -, poderão ir contanto com uma inevitável jacquerie lusitana. E não digo mais, porque concedo o benefício da dúvida: seriam apenas dois parvos?

* A foto foi feita ontem, pouco depois da penosa retirada dos dois toros e da bastante atónita acompanhante.

8 comentários:

Anônimo disse...

Tem a certeza de que os seus convivas não têm qualquer parentesco com o casal Del Rio-Saramago? Pois olhe, parece, tanto que têm em comum...

Nuno Castelo-Branco disse...

Bom, a mania do ouro deve ser a mesma...

Anônimo disse...

Meu caro, provavelmente seriam apenas dois parvos. Tão parvos como muitos portugueses que eu já vi fazer a mesma figura tendo a Espanha como alvo. Talvez até mais, pois há neste (desse) lado, um certo complexo de inferioridade.
Quanto à música, se se refere ao Flamenco, é “preciosa”, sim, uma das mais belas criações do homem, uma das que me consegue levar às lágrimas. O "queixo erguido" é coisa que faz falta a Portugal. Orgulho. Mas em Portugal, orgulho, agora, só na ASAE, e não no património cultural que esta se entretém a delapidar.
Cumprimentos,
Carlos M. Fernandes

Samuel de Paiva Pires disse...

De facto há de parte a parte um certo sentimento que torna virtualmente impossível uma união ibérica. Mesmo no caso do diplomata, os nossos instintos mais básico quanto ao país vizinho vêm sempre ao de cima, especialmente se regados com um bom vinho!

Nuno Castelo-Branco disse...

Bem, a Lola Flores não é propriamente o suprasumo. pelo menos, na minha opinião. Quanto ao orgulho "deles", olhe que transborda e muito, os níveis mínimos da decência. Especialmente quando visitam um país - sim, ainda o somos -, que sempre conseguiu, ou soube, evitar desaparecer do mapa. è isto que eles não compreenderam. O sucesso português, apesar da pequenez territorial, pobreza de recursos, foi em suma, conseguir pela diplomacia, guerra ou mera astúcia, manter-se como entidade. Essa é a verdade. E quanto a sentimento de inferioridade, digo-lhe, Carlos, que não existe aqui em casa. Eu vi e vivi noutro Portugal, talvez efémero e ilusório, mas que existiu: em Moçambique via-se aquilo do que fomos capazes e confio, ainda SOMOS. É uma questão de querer.

Anônimo disse...

Precisamos de grandes doses desse optimismo, Nuno, e do que o Miguel deu mostras há dias, quando falava na Geração de 70- "Eu ainda acredito em Portugal. Acredito que poderemos sair da choldra", porque pelo caminho que vamos, "eles" (leia-se os políticos) não evidenciam esse querer e sem isso...(sei que sou pessimista).

Anônimo disse...

Caro Nuno, eu tambén "conheci" esse outro Portugal, em Angola.
Ainda ontem passei a noite a falar com espanhol, aqui em Granada, apaixonado por Portugal (em trabalho, visita o país com frequência). Disse-me que queria morrer em Sintra. Nao me falou em Unioes Ibéricas.
(Da Lola Flores nao sei, mas a Carmen Amaya e Camarón sao grandes, muito grandes!)

Nuno Castelo-Branco disse...

Acredito que sim, Carlos, mas de facto, bastará passar a vista por um qualquer livro de "história" dos nossos vizinhos, para a estupefacção ser natural. Não contentes em interpretações completamente abusivas como falsas, pura e simplesmente omitem. Deve ser um problema mental É certo que existem excepções, mas a conduta desses "caballeros" urbi et orbi, não será decerto, das melhores. Pelo menos, no que a nós respeita.
Já agora, tentem anexar algo de mais proveitoso: a França é um bom alvitre...

"Lisboa é o porto natural de Madrid sobre o Atlântico" (Afonso XIII, em entrevista a Augusto de Castro no Diário de Notícias de 26-9-1922)