segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Kosovo, um trono esquecido, ou a impotência europeia


No início de 2007, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Sérvia, propunha aos seus concidadãos, a imediata proclamação parlamentar da monarquia no país. Na sua opinião, consistiria na derradeira barreira a opor à total desintegração do conjunto territorial e nuclear sérvio. A restauração susceptibilizaria a reorganização numa base descentralizadora do Estado, criaria autonomias aceites por todos e teria talvez impedido a secessão montenegrina. O regresso aos mastros, da bandeira da Sérvia de 1914, parecia indicar a viabilização de uma proposta que coincidia também, com a de largos sectores da opinião pública moderada. Quem hoje tenha por hábito contactar com sérvios através da web, conclui que na opinião daqueles, existiram fortíssimas pressões por parte da cúpula da U.E., para que tal solução não fosse consagrada constitucionalmente. Os acontecimentos de ontem, talvez expliquem o porquê de certas oposições euro-americanas.

Há exactamente cem anos, a Sérvia surgia como um importante peão no jogo de influências de duas das grandes potências europeias, a Rússia e a Áustria-Hungria. Se a Roménia pertencia de jure à órbita austro-alemã, a Bulgária e a Sérvia, recentemente libertadas do domínio otomano, tendiam a favorecer os interesses de S. Petersburgo: eram dois reinos eslavos e cristãos-ortodoxos. Todo o longo processo de independência do jugo turco, tinha contado com o firme apoio dos exércitos czaristas, ao mesmo tempo que os austríacos participavam na corrida aos despojos, recebendo a tutela da Bósnia-Herzegovina, anexada já no alvorecer do século XX. Existia um tácito acordo de partilha de áreas de influência, mas o nacionalismo sérvio, após a vitoriosa guerra balcânica de 1913, desafiou abertamente Viena, ao incentivar os movimentos irredentistas na província, que para o Estado-Maior austríaco, consistia nos chamados confins militares do Império, ou seja, a sua zona de segurança.

A história é conhecida e o atentado de Serajevo desencadeou a Grande Guerra, da qual a Sérvia saiu vencedora e engrandecida, com o nome de Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, posteriormente baptizado de Jugoslávia (Grande Eslávia)+++. Um extremo engrandecimento territorial, que amalgamou no novel Estado, populações tão diversas como eslovenos, croatas, húngaros, romenos, alemães, albaneses, sérvios, búlgaros, macedónios ou gregos. A principal razão invocada para a destruição do conjunto austro-húngaro - a chamada "Prisão dos Povos -, caía por terra, quando os diversos tratados de paz conhecidos com o nome de Versalhes (Versalhes, Trianon, Neully e St. Germain), criou fracas réplicas do secular império dos Habsburgo. Desde cedo, a Jugoslávia tornou-se num dos pilares em que assentava a organização político-militar de segurança da França, juntando-se à Checoslováquia e à engrandecida Roménia, numa chamada Pequena Entente, que viabilizava uma hipotética segunda frente contra um renascido revanchismo alemão.

A difícil conjuntura económica e política dos anos vinte, o agressivo nacionalismo ustachi croata e a ascensão dos regimes autoritários na Itália, Roménia, Hungria, Grécia e Bulgária, tiveram em Belgrado e reflexivamente, uma resposta no sentido ditatorial. Após o putsch nacionalista de apoio à monarquia do rei Pedro II (Março de 1941), o III Reich considerou-o casus belli e a invasão do reino ditou o fim da sua unidade. A Eslovénia foi partilhada pela Itália e pela Alemanha, enquanto os húngaros recebiam territórios outrora pertencentes à coroa de Santo Estêvão, a Batchka e a Voivodina. Uma Grande Croácia - compreendendo uma parte substancial da Bósnia-Herzegovina - surgia erigida em reino, sob a aparente soberania de Aymon de Sabóia, duque de Espoleto, mas de facto sob a férrea autoridade do dr. Ante Pavelic. A sua satelitização ao Eixo Roma-Berlim, ditou a eclosão de uma guerra sem quartel com os partisans maioritariamente sérvios, de Tito.

Enquanto a Bulgária participava na partilha ao ocupar a Macedónia, o reino albanês que tinha Vítor Manuel III de Itália como soberano (1939), anexava as minorias albanesas do Kosovo e da Macedónia ocidental.

A derrota do Eixo e o avanço soviético, implicaram o surgimento de uma república socialista da Jugoslávia, sob a liderança de Tito, um croata que baseou o seu poder no predomínio sérvio sobre o conjunto territorial do Estado. A sua morte e o longo período de indefinição na sucessão, agravados pela queda dos regimes comunistas em toda a Europa central e de leste, ditaram o fim do estado federal. A Eslovénia e a Croácia separaram-se, beneficiando da precipitação calculada da Alemanha que reconheceu unilateralmente as independências. A guerra generalizou-se, consagrando, devido a intervenção internacional, a divisão do país em múltiplos Estados. A Sérvia foi a principal prejudicada, porque não tendo conseguido manter as fronteiras anteriores a 1914 - perdeu a Macedónia -, viu escapar do seu controle as importantes e fronteiriças minorias sérvias da Bósnia-Herzegovina (a chamada república Sprska). A perda do Kosovo, ancestral berço do nacionalismo, foi considerada como hipótese intolerável.

O jogo de poderes entre as grandes potências - os EUA e a Rússia -, a fraqueza e pusilanimidade da UE, e o exacerbar dos nacionalismos numa região onde a definição de fronteiras é caótica e impossível, ditaram uma permanente instabilidade regional, tão mais perigosa, porque serve de referência para outros casos semelhantes e próximos (húngaros da Transilvânia romena, russos da Transnístria moldava, ou húngaros do sul da Eslováquia). Na própria Europa comunitária, existem numerosos casos de potencial conflituosidade, como o basco, catalão e galego em Espanha, o basco e corso em França, o tirolês do sul na Itália, ou a disputa Flandres-Valónia na Bélgica, entre muitos outros. O Kosovo, tornou-se talvez, no rastilho que dará origem a previsíveis e bem localizáveis conflitos em Estados com fronteiras há muito definidas.

O caminho natural para a secessão kosovar, seria decerto, a sua integração numa Grande Albânia, tal como aconteceu em 1941. No entanto, o papel dos Estados Unidos não é negligenciável. No momento em que os norte-americanos procuram aliados num mundo muçulmano que lhes é tradicionalmente hostil, o apoio à independência do Kosovo, é um nítido sinal de boa vontade, angariação de simpatias e consolidação da sua influência na área dos países produtores de petróleo no Médio Oriente. Os EUA nada têm a perder e a declaração do presidente em exercício do Conselho de Segurança da ONU, atribuindo a gestão do problema à "Europa", indicia uma potencial clivagem - de consequências imprevisíveis - dentro da própria UE.

A tradicional neutralidade portuguesa nos conflitos continentais, deverá ser mantida e o alheamento desta "causa", serve perfeitamente os nossos interesses com ambos os contendores, os atlantistas e os continentais. Portugal deve manter-se afastado do chamado barril de pólvora balcânico e dar preferência de intervenção, em áreas mais consentâneas com a defesa dos nossos interesses nacionais mais directos. Timor Leste é um exemplo, entre outros.

Há um ano, a restauração de um trono em Belgrado, teria possivelmente simplificado o advento de uma solução regionalista. Hoje, parece apenas mais uma oportunidade perdida.

+++ Recebemos um comentário correctivo acerca de Jugoslávia, que na realidade quer dizer Eslavos do Sul e não Grande Eslávia, como por ignorância escrevi. Reitero as minhas desculpas pela má informação.

5 comentários:

cristina ribeiro disse...

Leitura agradável, porque enriquecedora, esta.
Não tem sido nosso fado o assistirmos a uma sucessão de oportunidades perdidas?

cristina ribeiro disse...

P.S. Apareço como blogger, não o sendo, porque me pareceu a única hipótese de comentar...

Samuel de Paiva Pires disse...

De facto Cristina, apenas é permitido comentar estando registado no blogger, uma opção que foi activada depois de uns problemas com uns comentadores no ínicio do blog!
Obrigado pela preferência!

Nuno este post é mais uma das magníficas aulas de História que dás na blogosfera!

CMF disse...

Muito bom!
Conhece o livro "Serbia - A History of an Idea", de Stevan K. Pavlowitch?
Se ainda não leu, de certeza irá gostar.
Cumprimentos
Carlos M. Fernandes

Anônimo disse...

Assim à primeira leitura parece-me um artigo jeitoso, mas tendencioso.
Contém pelo menos um erro:
"posteriormente baptizado de Jugoslávia (Grande Eslávia)" Jugoslavia não é Grande Eslávia mas sim Eslavos do Sul (Jugo = sul).