quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Irritação com os irmãos

Ontem fiquei irritado. Fui para casa irritado. Deitei-me irritado. Não dormi sossegado e acordei novamente irritado.

E porque continuo irritado decidi escrever aqui o motivo de tanta irritação.

Ontem tive uma das discussões mais idiotas de toda a minha curta vida, com um colega brasileiro, também de Relações Internacionais. As opiniões dele reflectem o senso comum e parco conhecimento acerca da cultura portuguesa que são apanágio de um sistema de ensino (até ao 12.º) essencialmente de esquerda. Neste Brasil que se gaba de ser um país cristão ocidental (e de onde é que terá vindo isso?), onde a dialéctica política é essencialmente entre marxistas e neo-liberais. Sim, leram bem, marxistas. Ainda os há. Aliás, há os que julgam que são marxistas, que levam com um chorrilho de ideias que lhes toldam a visão do mundo, e que portanto se julgam marxistas, quando o próprio Marx a determinada altura da sua vida acabaria por dizer que se determinadas pessoas eram marxistas, então ele não o seria.

Entre os argumentos mais comuns para falar mal de Portugal encontra-se o argumento de que Portugal é um país retrógrado e provinciano, ideia que me foi explicada por um conhecido Professor brasileiro de História das Relações Internacionais, como advindo do facto de a maior parte dos colonos ter vindo de regiões rurais, e trabalhar aqui nas grandes cidades como padeiros, sapateiros, talhantes, barbeiros, e que por isso julgam que todos nós nos chamamos Maria ou Manuel, e que todas as mulheres têm bigode.

Ora esta imagem já não corresponde na sua totalidade ao Portugal contemporâneo. Mas muitos brasileiros acham que sim. E como acham que sim e que isso é verdade não querem saber de mais nada. Lembra-me uma definição do conceito de crenças, como sendo imagens e valores que se tem por absolutos, apesar de não serem corroborados pela realidade.

Como não ficar irritado quando um brasileiro me quer ensinar História de Portugal dizendo que foram os espanhóis que fizeram a nossa independência (hmm e quem será que fez a do Brasil? Ops, foram as elites portuguesas que tinham os seus interesses aqui), que Portugal só é o que é porque a União Europeia nos governa, que somos o curral da Europa, que os únicos produtos manufacturados que produzimos são Pastéis de Belém, enfim, uma série de outras coisas que eles acham mesmo que correspondem à realidade.

Outro argumento, utilizado pelo mesmo indivíduo, é o da economia Brasileira ser muito superior à Portuguesa, já que o PIB é muito superior. Ora bem...O PIB é de facto superior, mas tendo em conta que nós só somos 10 milhões, e eles são 180, dos quais 50 milhões vivem abaixo do limiar da pobreza, palavras para quê? A economia brasileira continua, tal como no final do século XIX, baseada na agroexportação. A nossa economia é industrializada e baseada em serviços.

Não somos assim tanto curral da Europa como temos tendência a pensar. Se saíssemos todos de Portugal por uns tempos, seríamos atingidos pela percepção de que Portugal é até não é mau sítio para se viver. Com os seus problemas claro, que existem em todos os países.

Mas não temos favelas nem temos o nível de corrupção que perpassa todo o sistema político brasileiro. Temos óptimas infraestruturas, rodoviárias, ferroviárias, de habitação, somos muito mais avançados tecnologicamente do que o que a maioria das pessoas pensa, temos melhores condições de vida. Basta que estejamos na 28.º posição no Índice de Desenvolvimento Humano, onde o Brasil aparece no 69.º lugar.

Alguns dizem-me que Brasília é uma ilha dentro do Brasil, muito organizada, que o resto fora daqui é o caos. Pois se aqui o asfalto parece borracha, os carros são modelos europeus modificados bem mais frágeis, o lixo inunda as ruas, existem carroças com cavalos que andam a apanhar o lixo andando lado a lado com carros, farmácias parecem mercearias do bairro, indicações de trânsito é coisa de que nunca ouviram falar, as casas são feitas com materiais fracos, o gás é trazido pelo homem do gás que anda todas as manhãs a gritar "Olhó gás" para as pessoas virem à janela dizer-lhe que querem gás, os trabalhadores em serviços tipo supermercado, cafés ou restaurantes são lentos a pensar e a trabalhar, os autocarros são uma lástima, não há estruturas para pedestres, entre outros tantos pormenores de que me vou esquecendo, então como será o resto?

E depois dizem-me que foi a colonização portuguesa que fez este país ser assim. Esquecem-se que todos eles são descendentes de portugueses. Esquecem-se que pelo menos desde o Marquês de Pombal a metrópole sempre favoreceu muito mais as suas colónias do que a si própria (como alguém me disse, nos anos 60, 70, Luanda era bem mais desenvolvida do que Lisboa por exemplo). Aliás não se esquecem, apenas não sabem, porque ensinam-lhes a História com uma visão distorcida. Mas também não se interessam.

É também frequente ouvir afirmações que levam à conclusão de que tudo o que acontece de mal no Brasil é culpa da colonização, mas já o que acontece de bom é porque o povo brasileiro é de facto grandioso. Acham que nós somos retrógrados e conservadores. Pelo menos não somos um país de "piriguetes" (termo brasileiro para meninas um pouco "dadas") e veados (gays). Nem mesmo os universitários, que se esperava serem um pouco mais open-minded conseguem conceber um relacionamento ou uma conversa entre um homem e uma mulher sem pensar em sexo. Tudo revolve à volta de sexo. Sim, tudo é Futebol, Carnaval e Sexo. É esta a imagem internacional do Brasil.

Mas a melhor de todas é quererem ensinar-me a falar Português. Como se já não bastasse a questão do Acordo Ortográfico, ainda dizem que nós não falamos português correcto. Ora atentando na etimologia da palavra, parece-me que Português é quem é de Portugal. Querem vir ensinar-me a falar a minha própria língua? Os brasileiros que inventaram um sem número de expressões e omitiram outras tantas porque são demasiado complicadas para as conseguirem compreender (não esquecendo o índice de analfabetismo)?

Gosto do Brasil sim, e bem que gostava de passar aqui mais tempo. Mas muitas pessoas têm de aprender História. Têm que ler. E têm que conhecer a sério aquilo de que falam e desprender-se do estigma da colonização. Nós não passamos a vida a falar nisso, mas eles não perdem uma oportunidade para tal. E alguns ainda dizem que a colonização espanhola foi exemplar. Pudera, mataram todos os índios.

Continuo irritado. Mas menos. Talvez esteja a dar demasiada importância a uma questão idiota. A um indivíduo idiota, um entre muitos que não o são e com quem tenho gostado imenso de conviver. Aquilo que descrevi é produto da ignorância, também de parte a parte, que em nome não se sabe bem de quê, tem alimentado um certo misticismo que teoricamente opõe a cultura brasileira e a cultura portuguesa. Não é possível acabar com os preconceitos com mais preconceitos.

Embora as elites que vão lá fora vejam Portugal e o mundo com outros olhos, a grande maioria não tem essa oportunidade e continua a ter uma imagem rudimentar de Portugal, o que é compreensível, tendo em conta o que já referi acima acerca dos colonos. Mas têm que se esforçar para percepcionar a realidade actual.

O Brasil tem capacidade para ser uma grande potência, têm é que melhorar certos aspectos e sair dos estigmas criados por eles próprios. Quanto a Portugal, de facto é um grande país. Mas também pode ser bem melhor.

Não somos assim tão diferentes. As culturas não são assim tão diferentes. As duas nações têm muito a aprender uma com a outra, e poderiam beneficiar de um relacionamento bem mais aprofundado. Pena que em determinada altura da História nos tivéssemos deixado separar graças aos interesses de terceiros.

Portugal e Brasil têm que aumentar a cooperação entre as duas nações. Só assim se poderão acabar com fantasmas e imagens ignorantes entre as duas culturas, que originam as centenas de piadas que brasileiros fazem acerca de portugueses e os preconceitos que nós temos que não correspondem à realidade brasileira.

Irritações à parte, Brasília até é bem agradável, bem tranquila, fruto do génio arquitectónico de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, e de uma visão de modernidade personificada por Juscelino Kubitschek (que viria a ser exilado em Lisboa), embora já um pouco subvertida.

Aqui sinto que estou numa verdadeira Universidade digna desse nome, onde a ciência continua a ser a prerrogativa mais importante que leva docentes e discentes a investigar e produzir conhecimento. Onde esses não se perdem em disputas de poder e demonstrações de arrogância. Neste particular, no campo académico, poderíamos aprender muito com o Brasil, o que talvez nos fizesse sair da nossa pequena visão paroquial do papel da academia. A este respeito recomendo a leitura do post de Miguel Castelo-Branco intitulado "Deixem-se de pedantices e venham aprender a arte da humildade".

Para finalizar, deixo apenas um expresso desejo de que nos anos em devir, à medida que o ambiente internacional e a Política Externa Brasileira vão exigindo e conferindo um papel cada vez maior ao Brasil, que Portugal possa apoiar a sua nação irmã na sua ascensão a grande potência. Mas também os brasileiros têm que acreditar em si próprios. Por exemplo, numa aula de Organizações Internacionais fui o único a mostrar-se favorável à passagem do Brasil a um lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, já que os restantes colegas acham que o Brasil não tem capacidade para isso e tem demasiados problemas internos por resolver.

Isto faz-me lembrar aquela característica portuguesa, à qual também não sou alheio, de não perder uma oportunidade para falar mal de Portugal. Como vêem não somos assim tão diferentes. Só na exteriorização dos sentimentos, nós pelo fado, os brasileiros pelo samba. Talvez possamos ensiná-los a cantar fado e eles nos ensinem a sambar. Quanto a mim cá vou tentando aprender a sambar, já que cantar o fado é arte para a qual não estou capacitado...

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